1º movimento: Allegro vivace e con brio
Não sei quanto tempo tenho de morto. Aqui onde estou, não dá para contar o tempo. Aqui, o tempo não conta.
Ainda estou meio atordoado. Onde agora me encontro as coisas por vezes são muito parecidas com o que eu antes vivia e as deste lugar, que não é um lugar definido. Para começar, as dimensões não são as mesmas, as formas variam em intercambiantes difíceis de descrever, não há divisões estanques entre dia e noite. O tempo, aqui, não conta. Nada obstante, há uma sensação de felicidade, de segurança, de doce acolhimento que prende e conforta. Dá vontade de ficar, de se desprender das lembranças que trazem o fugaz desejo de voltar de onde saí.
Nem sempre estou em contato com outros. Talvez porque ainda tenha de cumprir condições de adaptação que a intuição – a intuição, não o raciocínio – me dizem que virão a me ser reveladas. Contudo me sinto extremamente alegre com pessoas com as quais pude dialogar. Na verdade, os diálogos não são falados. Não há sons, exceto persistentes acordes musicais de sublime harmonia e maviosidade.
Quando vi Beethoven, parte de mim dizia que meu conhecimento da língua alemã não bastaria para poder conversar com o compositor. Além disso, o mau temperamento dele, sua amargura, tudo aliado à surdez, aconselhava-me a não me atrever a tentar falar com o músico. Fiquei surpreso ao perceber que ele me acenava com bondade, chamando-me para perto.
Na verdade, não trocamos palavras, trocamos pensamentos. A telepatia, descobri, derruba toda barreira de linguagem. Torna inútil a habilidade de se expressar em diferentes idiomas. A linguagem falada, a escrita, fazem parte da imperfeição do mundo material. Daí vem a dificuldade do grego, ou do asiático, ou do russo, em ler o que quer que não esteja escrito com os caracteres em que foram alfabetizados, ideogramas ou cirílico, ou o que for equivalente. Na comunicação oral, a diversidade das falas, e até dos diferentes sotaques, bem como a enorme quantidade de dialetos, tudo faz com que o pensamento, a ideia pura, aquela que o cérebro constrói antes de ser vertida em sons, não possa ser livremente compartilhada. Aqui tudo é tão diferente… Beethoven e eu podíamos “co-pensar”: a fala, para nós, libertados da matéria, não era necessária.
– Mestre, sou grande admirador de sua obra. Até pedi que no meu funeral tocassem o terceiro movimento da nona sinfonia. Aquele adagio que precede o coral em que o senhor põe música no poema “Ode à alegria” de Schiller é o que pode haver de mais lindo, de mais inspirador, de mais harmonioso.
– Qual é seu instrumento? – perguntou-me o maestro.
– Eu? Ah, que pena… Sou apenas um grande apreciador da música, de toda boa música, mas infelizmente não sei tocar nenhum instrumento.
Beethoven – coisa rara! – esboçou um sorriso.
– Você ainda tem muito que aprender nesse seu estágio, meu caro. Nós estamos livres de muitas amarras. Aquilo que tínhamos vontade de fazer e não conseguíamos por causa da matéria, hoje nos é naturalmente possível executar. Eu mesmo ando pensando em refazer algumas coisinhas que eu deixei mal feitas. Uma delas é aquela coisa horrorosa feita por encomenda, a tal “Vitória de Wellington”. Fiz para pagar algumas dívidas, mas saiu uma traquibórnia! Essa aí não tem jeito pra ela. O que não se pode melhorar, ou, ao menos, tornar menos ruim, melhor não mexer…
– Sabe, continuou, – eu já estava muito surdo quando inventei de compor um trio para piano, celo e violino, no qual já imaginava como seria mais livre a vida depois de deixar o mundo material. Conforme você for se adaptando à vida por aqui, que você acha de assumir uma das cordas para examinarmos o trio “O Fantasma”?
2º movimento: Largo assai ed espressivo
A surdez já avançara muito ao tempo em que Beethoven havia composto o trio “Der Geist”, “O Fantasma”. Convidara dois músicos para acompanhá-lo num ensaio daquela peça. O depoimento do violinista dava conta de que o piano tocado por Beethoven estava desafinado, e que o pianista – já muito surdo – atravessava na execução dificultando terrivelmente a performance.
– Eu sei disso tudo, interpôs o maestro ao ler meu pensamento. – Mas você vai ver que já no segundo movimento, quando você for ensaiar comigo, você vai sentir que quando eu escrevi o Largo, a música já não era mais para aquela dimensão onde estávamos. É como se eu já tivesse me mudado para cá…, suspirou, sonhadoramente.
Perguntei a mim mesmo: será possível refazer daqui coisas que fizemos antes de mudar de plano e das quais nos arrependemos? E se forem refeitas, poderão repercutir no mundo material?
3º movimento: Presto
No lugar em que não se conta o tempo porque lá o tempo não conta, percebi que poderia tocar piano. Não o violino, plangente e cigano. Não o celo, sisudo ao assumir os acordes graves e gracioso ao cantar os agudos, mas o piano, meu velho sonho, minha acalentada ambição. O piano, o rei dos instrumentos, aquele que se basta a si mesmo, que sola e se acompanha, aquele para o qual a maioria das grandes obras, mesmo as mais complicadas, foram transcritas para nele serem tocadas. E que limites poderia haver para mim, para as minhas mais elevadas aspirações, se tudo pudesse ser realizado apenas com a força do pensamento!
Nesta minha condição de espectro, de espírito, de fantasma que seja, a matéria não existe. É como o oxigênio no ar que se respira, invisível aos sentidos, imperceptível, mas essencial para a vida enquanto humano encarnado. Liberto das peias da carne, tudo se passa com a fluidez e os atributos do pensamento. Não há distâncias ou proximidades, de lugar, de tempo, passado, presente, futuro. Basta a força do pensamento e os dons que aqui são disponíveis para todos a fim de que se possa comunicar com qualquer ser, deslocar-se para onde o pensamento levar, assistir os mais diferentes episódios, compreender de modo integral o que se contempla.
Inspirado pela música do mestre de Bonn, pelo trio O Fantasma, depois do Largo no segundo movimento, aquele em que piano e cordas passeiam em harmonia e às vezes quase que competindo entre si, mas sempre com melancólica sonoridade que transporta o ouvinte para esta dimensão atemporal, chega-se ao Presto, com as cordas em vertiginosos acordes e o piano em notas quase dissonantes. Rápido como o pensamento.
Fui para Atenas, à praça do Ágora, para a reunião dos cidadãos naquele espaço nobre cercado de stoas, os pórticos colunados; de pritaneus, dos gabinetes administrativos; do buleterio, onde se reuniam os quatrocentos cidadãos escolhidos pela eclesia, a assembleia geral, para elaborar leis que beneficiassem o povo. De lá, fui para uma Alemanha onde um povo que se vangloriava de ser culto e politizado estava reunido e levantava o braço direito galvanizado pela oratória de um maluco, aos gritos de sieg heil, sieg heil! Depois, voei para o Japão a tempo de ver cogumelos de fogo lançando morte sobre Hiroshima e Nagasaki. Quanta destruição, quanta crueldade!
Quase ao fim de uma guerra onde o homem experimentava um contra o outro as armas mais impiedosas, como o gás mostarda e a bala dundum, os russos acolhiam o que doutrinava Lênin e o partido bolchevique, sem se importar com o extermínio de quem não se submetesse à ideologia marxista, com o assassinato de tanta gente, aristocrata ou não.
No Brasil, acompanhei movimentos dos “diretas já” que visavam a tirar o país da ditadura militar, distanciando-se de um estado policial que supervalorizava a segurança do estado em detrimento da segurança do cidadão para enfim restabelecer a democracia.
Vi quando o cego Bartimeu, filho de Timeu, estava à beira da estrada que leva de Jericó para Jerusalém. Ouvira que por lá passaria um profeta. Ao perceber que se aproximava o mestre, Bartimeu pôs-se a gritar:- “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!” Diziam-lhe para se calar, para não perturbar o pregador, mas Bartimeu insistia:- “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!”
Autorizado pelo profeta, o cego foi até ele e repetiu a súplica.
– “Que queres?”, perguntou-lhe o pregador que já sabia o terrível suplício que sofreria ao chegar a Jerusalém. – “Quero ver!”. – “Vai. Tua fé de salvou.”
Vi desenhar-se contra o céu enfarruscado as silhuetas das três cruzes levantadas na colina do Gólgota, em aramaico Gülgatã, lugar de suplício que o romano chamava de Calvário.
O trio Der Geist chega à coda. O violino e o violoncelo, num último pizzicato, harmonizam-se com as derradeiras notas pingadas ao teclado do piano.
Neste lugar que não está em um local definido, onde o tempo não conta porque aqui não se conta o tempo, estou feliz, estou à vontade como nunca me sentira antes em lugar nenhum, em nenhuma época. Tudo é fluido, nada é consistente, tudo é leve, mais leve que o ar. As cores, a intensa liberdade, a simpatia para com tudo e com todos, é trazida pela força deste amor que em tudo paira, que a todos atinge. Amor supremo trazido para estas paragens por aquele homem que, com seus pés empoeirados na estrada de Jericó, não hesitou em sacrificar-se pelo amor universal, caminhando impávido para a cidade onde seria torturado e morto, levado ao suplício final numa colina fora da cidade de Jerusalém que o judeu chamava de Gülgatã e o conquistador chamava de Calvário, monte da caveira.