Do baú das memórias, vêm meus primos, os Farahzinhos. Eram enfants terribles, a engendrar as mais artilosas peripécias. O tempo… ah, o tempo! O tempo era o da inocência não tão inocente assim, mas cheia de sonhos, de pureza, de encantamento. Aqueles tempos…
Chamavam-se José e Alexandre e eram gêmeos vitalinos. Um a cara do outro. A voz meio fanhosa, arrastada, indolente, lembravam os movimentos vagarosos das águas barrentas na transição das marés. Tão parecidos eram que, dizem, uma certa vez travaram este diálogo:
– Mano?
– Que é que tu queres? Quando tu começas assim é porque estás querendo me pedir alguma coisa.
– Pôxa vida, cara… Não é nada demais…
– Fala logo, Zé!…
– É o seguinte, Alexandre. Hoje á noite tenho que ir bater ponto na casa da minha namorada. Acontece que eu tenho um programa que já acertei com o Cara de Vaca, e não dá pra eu perder.
– E o que eu tenho a ver com isso?
– Simples. Só tou te pedindo pra tu ires em meu lugar bater o ponto com a gata na noite de hoje…
Se o Alexandre topou cumprir o expediente com a namorada do Zé; ou se deu certo e a namorada não desconfiou de nada; ou se ela desconfiou, e ainda assim, topou trocar beijos e abraços com o irmão gêmeo; ou se não deu certo e a garota terminou o namoro, disso não posso dar certeza, porque, ao que eu saiba, ninguém teve notícia certa do desfecho, ou até mesmo se a história aconteceu na realidade, ou se foi apenas mais uma treta inventada pela dupla.
O Cara de Vaca, parceiro das estripulias, também fazia das suas. Uma das mais conhecidas foi a da Nega Maluca no baile do Remo e a paixão do Bazinho.
Naquele carnaval, o Clube do Remo inventou de copiar a Assembléia e resolveu terminar o tríduo momesco em grande estilo promovendo uma festa onde era exigido o traje a rigor ou fantasia. O grand monde, como diria certo colunista social, se assanhou todo, fazendo do baile um grande sucesso.
Bazinho apertou-se num smoking alugado, encheu a cara de uísque Cavalo Branco e lá estava à beira do salão, eufórico, a espirrar lança-perfume nas brincantes; entre essas, uma, fantasiada de nega maluca e, claro, com a cara coberta, especialmente graciosa e assanhada, dava giros no salão; ao passar pelo gordo Bazinho, fazia-lhe festinhas no queixo, nele se enroscando como gata de estimação, sem nada dizer e se esquivando todas vez que Bazinho, já muito empolgado, tentava abraçá-la. E quanto mais a orquestra tocava os sambas e marchinhas, tornando os ânimos cada vez mais empolgados, mais a Nega Maluca enfeitiçava o já inteiramente apaixonada Bazinho.
Bazinho era gordo, muito gordo. Nada obstante, era um rapaz bonito e craque da equipe de basquete do Remo. Muito popular e de uma simpatia irradiante, tinha certeza que aquela graciosa Nega Maluca que lhe estava dando tanta corda iria, ao fim do baile, emendar um programa galante com ele.
– Viva o Zé Pereira/Viva o carnaval/Viva o Zé Pereira/Que a ninguém faz mal -, atacou a banda, com isso pondo fim ao baile.
Pierrôs, colombinas, arlequins, piratas, jardineiras, negas-malucas, tiroleses e tirolesas, despediam-se com saudade do carnaval que findava.
Namoros ali começaram, alguns evoluindo pra noivado e casamento.
Bazinho partiu com agilidade de basquetebolista para cima da Nega Maluca, a qual dele tentava fugir. O gordo alcançou sua diva e arrancou-lhe a cabeça de boneca, estendendo-lhe o beiço para fruir o beijo tão longamente desejado nos giros pelo salão. Sua surpresa e indignação não poderiam ter sido maiores:
– Que é isso, gordo? Tá me estranhando, é? -, debatia-se, aflito, o Sérgio Cara de Vaca. – Pô, sou eu, Bazinho. Me larga, gordinho!
Os carnavais de outrora passaram. Mudaram de cara, de cenário, de contexto. Passaram peraltas como os Farahzinhos, Cara de Vaca, Bazinho. E nem Roma voltou a pegar fogo, nem me saiu música do teclado do laptop. O que restou foram estas linhas, muitas lembranças e alguma saudade.