É importante saber o nome das coisas. Ou, pelo menos, saber comunicar o que você quer, deseja ou precisa. Imagine-se chegando em um lugar e alguém dizer para você:
- Eu gostaria de falar com o aquele.
- Aquele quem?
- O aquele, aquele um.
Eu não tenho dúvida que a comunicação ficaria pelo caminho e que ambos estariam fadados e olhar um para cara do outro sem saber que caminho iriam tomar.
Ele era suboficial e enfermeiro da aeronáutica vindo da cidade de Bragança, interior do Pará. Ela, sua prima, uma dona de casa que viera da cidade de Viseu – interior do Pará – visitar seus parentes que moravam em Belém. Naquela época, os interiores não tinham tanta aproximação com a capital como se tem nos dias de hoje. Novas vias foram construídas facilitando o acesso de todos às capitais. Não havia tanta tecnologia como as redes sociais que aproximasse cada vez mais as pessoas que moravam distantes umas das outras, fazendo com que essa distância ficasse quase inexistente.
O analfabetismo era grande, a educação era precária e nos interiores se falava, por muitos, uma linguagem que se distanciava bastante da norma culta. Uma linguagem tipicamente interiorana com um regionalismo bem peculiar e forte. “Você iria aculá”. “Comprava algo demais caro, meu mano”. “Sentava-se num mucho para prosear com aquele sumano”. “Aquele caboco se embrenhou na ilharga daquele lugar”. “Que tá não?” “Ele se inficou-se pra dentro da mata”.
Em um belo dia, Ela chega na casa do tio Benedito, que apesar de ser prima o tratava como tio, coisa de interior que tratava militares com um certo respeito e endeusamento. Ela veio pedir para ele conseguir, no hospital da aeronáutica, uma consulta para ela, pois há dias ela estava sendo perturbada por um ardume terrível, segundo ela.
Ele disse a ela que estava tudo bem e que poderia levá-la para uma consulta com um médico capitão, amigo dele, mas ela só teria que esperar uns dois dias. - Tudo bem, disse ela.
Chega o grande dia, estava a senhora Nazaré (assim se chama a prima de seu Benedito) em frente do médico que logo pergunta a ela: - Bom dia! Em que posso lhe ajudar? O que a Senhora tem?
- Haa! Dutô, eu tenho um ardume que começa na minha bucha, desce pela minha cantarera e para no meu estâmago.
Com a cara de espanto, o médico olha para o seu Benedito e diz: - Eu não entendi nada. Traduz para mim.
- Bem! Ela tem uma dor que começa nos seios, desce pela costela e se aloja no estômago.
O médico, com um sorriso no rosto, disse: - Você tem flatulência e isso realmente traz um grande incômodo e você deve soltar vários gases.
Ela, sem entender nada o que disse o médico, olhou para o seu Benedito e disse: - Eu não entendi nada, traduz.
- Isso são gases. É por isso que tu soltas vários puns.
Ela ficou sem jeito, mas aliviada, pois logo foi medicada e passou a passar bem.
Sem dúvida, naquele momento, não houve comunicação entre o médico e sua paciente, pois não houve entendimento entre os dois. Ambos usaram uma linguagem diferente que não proporcionou uma comunicação de fato.
Isso me fez lembrar minhas aulas de linguística na faculdade. Penso que Marcos Bagno, Saussure, Chomsky, entre outros, iriam amar essa situação e de também ser interrogado qual dos dois estaria errado, o médico ou a paciente?
Não há dúvidas que eles diriam que assim como nós temos um guarda-roupa, no qual nele há roupas para todas as ocasiões, também temos que ter um guarda-roupa linguístico com linguagens diferentes para cada interlocutor, ou seja, assim como as ocasiões definem a roupa que usamos, assim os diferentes interlocutores definem a linguagem a ser usada. Visto que a linguagem é a maneira que usamos nossa língua (idioma) e que isso nos torna um bom falante de nosso próprio idioma.
A linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover…) Como diz e afirma o mestre Luís Fernando Veríssimo.
Saindo do consultório, ela disse: - Que tá não? Esse médico querendo falar difícil. Ele falou coisas que eu num entendi, mas espia só, não, eu também falei e ele num entendeu e logo vi que ele ficou tudu pitiú. Mas de modo que ele pensou que eu era besta, pois besta fui ele que não sabia o que falei. Mas tio Benedito! Ulha só, não. O senhor deu fui uma aula pra ele e mostrou que bom era o senhor que logo entendeu o que ele falu e entendeu eu tombém. Eu gostei por demais.
“O que separa o ser humano atualmente, não é a distância física, mas sim o silêncio.” (Jorge A. M. Maia)
“A língua é um rio que se renova a cada dia margeando cada ser” (Jorge A. M. Maia)