Tempos de mudança. A tecnologia disponível facilita falar com quem está longe e nos poupa de encarar os olhos de quem está perto.
O abraço perde valor para a “curtida” em aplicativos. Pouco se fala ao telefone, transformado em instrumento de digitação.
Começamos a converter a nossa linguagem falada numa versão com tantas abreviaturas a desobedecer a língua oficial dos países – e o uso do vernáculo começa a se transformar em “fds”, “td” e “vc”.
Não há proximidade e amadurecimento. Não se conhece alguém como outrora se conhecia. A essência de outra pessoa se substitui pela padronização da aparência, onde os tons de fala, as pausas, a respiração, os sotaques, cheiros e sinais característicos são desprezados. Busca-se “um igual” e se “harmoniza” a realidade com o encobrimento dos sinais e cicatrizes que eram exatamente as características individuais. Fotos belas que nos “protegem” de nós mesmos e da nossa realidade, como se fossem a cal usada por fora do sepulcro. E é na busca por imediatas satisfações que geramos insatisfações duradouras, que vão ser controladas por calmantes e terapia.
Sem perceber, vamos vivendo dessa e nessa capa de aparência e transformando a nossa vida em fotografias e curtidas para exibir… E não mais, como outrora, as fotografias nos relembram do quanto se curtiu de verdade o momento que se passou em algum lugar e na companhia de alguém.
Somos engolidos pela padronização dos comportamentos em torno de objetos e do que passa a ser destacado como relevante por veiculação pela mídia e, portanto, em torno de um interesse dirigido. Adotamos como real a ideia que absorvemos nessa massificada e ilusória exposição.
A história imortalizou obras e feitos de grandes pessoas, como exemplificam a Monalisa, de Leonardo da Vinci, ou o David, de Michelangelo. Hoje parece que mais se valorizaria a “foto” com um deles do que a obra imortal.
Ademais, uma coisa é imaginar como seria estar conversando com Shakespeare, Camões ou Leonardo da Vinci e outra, bem diferente, é se assistir ao holograma – realidade virtual – de celebridade já falecida, que não valoriza a essência da obra humana.
É a morte que transforma em imortais as obras e os seres. O holograma contraria essa lógica e pretende cultuar mais a imagem para consumo imediato do que a obra que se fez.
Pela agilidade da informação veiculada no “mercado global” começa a se formar uma homogeneização nos gostos e produtos por se consumir, nas relações humanas presas nesse exibicionismo artificial, fomentador de imensuráveis dores nas almas dos seres (ainda) naturais que somos.
Viajamos para outros países para conhecer paisagens, lugares, hábitos culturais, cheiros e sabores. Contudo, não raro consumimos as mesmas marcas de bebida ou alimento, até notando idênticas marcas de pizzarias ou hamburguerias e sem que isso nos cause desconforto, pois não percebemos claramente o quanto estão sendo sufocadas ou mascaradas as culturas locais que pretendíamos conhecer.
Perdemos a nossa identidade, o direito de “não estar conectado”, de “não ter rede social” e vemos o enfraquecimento dos laços, raízes, identidades nacionais e regionais. Tudo isso favorece os grandes operadores da Aldeia Global.
Não percebemos o quanto do nosso eu, do nosso “self” se esvai quando apenas nos tornamos “mais um” no enxame que se desloca como massa… Nos fragmentamos, sem sentir.
Em Kafka, “Odradek” tem identidade híbrida, não sendo inteiro e tendo identidade formada por diversas partes, sem nexos. Kafka o descreve como restos de diversos fios coloridos, emendados e embaraçados. Um tipo de Frankestein que não é mais do que a reunião de partes que jamais serão um indivíduo.
Muitas mudanças em pouco tempo… E, se é verdade que a internet propiciou o surgimento de novos papéis, profissões e prósperos mercados, também o é o fato de que transformou passivos anunciantes em ativos influenciadores digitais e propiciou espaço para que o coach pudesse pretender concorrer com o profissional de qualquer área…
Nesse contexto, ter acesso à muitas informações não é o mesmo que obter conhecimento. Há dificuldade na seleção das informações corretas, verdadeiras e de boa fonte e é necessário que se dedique tempo e pensamento crítico para se cotejar conteúdos de informação e se dominar o conhecimento.
Nada disso é em vão ou ocorre como fruto do acaso. Esse jogo fortalece a influência cultural e econômica das grandes nações e as faz avançar por outras fronteiras. A jogada é sutil, mas gera xeque-mate.
Quem não integra esse núcleo decisório está na “periferia”, como constataram os 500 líderes mundiais que se reuniram no Hotel The Fairmont, na Califórnia, em 1995. Estava em marcha “uma nova civilização” e se cogitava que em poucas décadas cerca de 20% da população economicamente ativa bastaria para assegurar as necessidades produtivas da economia mundial.
Desde então e percebendo como o mundo está, compreendemos que não teremos “o futuro” desejado se – numa metáfora do futebol – passivamente aceitarmos lugar no banco, enquanto assistimos o jogo dos que estão em campo.
Os grandes atores globais buscam ganhos, de poder e dinheiro. Como se produz ou se obtem isso? Através da romana ideia do “pão e circo” que disfarça práticas transfronteiras que esvaziam a estabilidade política de Nações Soberanas e questionam princípios, dogmas culturais locais e traços estruturantes das sociedades. Verdades pontuais são elevadas a verdades globais, com amendrotadoras lendas e desinformação circulando e deixando vulneráveis as opiniões de povos, de grupos sociais, quiçá levando indíviduos a perder a sua identidade nacional e o amor pela pátria. Noutro prisma, países perdem plena autonomia conforme se endividam perante os organismos internacionais, deixando de investir em estrutura, saneamento, saúde e armamento quando têm elevados juros a pagar – o que só aumenta o seu nível de dependência. A cada dia parece que há mais concentração nas mãos dos grandes players globais.
A grande maioria se satisfaz com coisas periféricas e mediatas, enquanto os banquetes continuam a ser servidos aos poderosos comensais. Investimentos aqui ou acolá mais representativos do que os empregos criados. Matriz num país, enquanto as indústrias situam-se em países onde grandes corporações pagam frações do que pagariam aos seus nacionais…
Nossas areias monazídicas e raros minerais foram vendidos barato para que outros desenvolvessem tecnologia que os levasse a pisar na lua, em 1969… Lua que até hoje só admiramos de longe.