Falta a fina ironia, mostra de inteligência e ausente em tantas discussões. Não sei se perdemos a finesse e o fair play ou se as coisas se radicalizaram a ponto de não haver lugar para debates altruístas.
Bertold Brecht dizia que “apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la”. Parece que nos perdemos nos labirintos criados pela nossa ilusão e preferimos cuidar dos jardins a resolver os problemas de estrutura das cidades, fome, miséria e aspectos nacionalistas do desenvolvimento econômico e da soberania nacional. De certo modo, fica-se a debater a periferia dos assuntos, no lugar de se criar reais mecanismos de transformação social.
A ideia de governabilidade neutralizou ideias e nivelou tudo, alimentando em muitos a sensação de que promessas foram feitas para não ser cumpridas, fruto de tácito acordo eleitoral, onde se promete o que não se vai cumprir e os eleitores não cobram a realização da promessa. Assim, tudo continua como sempre e a vida segue.
Além disso, a polarização aumenta, o emocional domina a cena e a vitória justifica tudo. Interessante experiência foi feita em escola de Timóteo (MG), em projeto vencedor do Prêmio Professor Transformador 2021. O belo trabalho em torno da construção dos valores democráticos revelou duas curiosidades: a polarização entre os eleitores e alunos querendo trocar merenda por votos, no processo de escolha do líder da sala. Natural reflexo do mundo adulto. Como se vê, a teoria sucumbe à realidade, que não se importa em dobrar o discurso democrático republicano, que parece ficar sem conteúdo…
Além disso, nos deixamos levar por bandeiras e enfrentamentos, como torcedores cegamente defendendo as cores dos seus times, enquanto os poderosos confraternizam nos faustosos salões e o baile segue.
É inútil discutir quando a verdade cede lugar à pós-verdade, figura mais afeta ao desejo das pessoas do que à realidade das coisas. Sociedades têm surfado na superfície emocional, deixando de lado a razão e o raciocínio. Abandona-se a lógica e o pensamento político mais elevado, na medida em que se seleciona versões dos fatos, distorcendo o que contraria a percepção. Joga-se para baixo do tapete parte do fato, negando a sua integridade, como valor absoluto. Enquanto isso, as coisas têm fluído para a consolidação de incontestáveis meras versões…
Parece que nem todos querem pensar e decidir por conta própria, preferindo soar como ovelhas guiadas por pastores à beira das escarpas. Outrora brigamos por nossa independência individual e parece que a conquistamos para ser dependentes do bando ao qual nos vinculamos, quando agimos como adolescentes ávidos por aprovação. Cazuza já havia nos alertado sobre as ideias que não correspondem aos fatos e George Orwell tinha razão quando dizia que “as mentiras entrarão para a história”.
Caminhamos para um momento pós-verdade, onde o discurso tem sido mais adequado ao que as pessoas querem ouvir. Parece algo próximo aos grandes apresentadores, que entretinham as plateias, dizendo “- Respeitável público!”.
Estamos ávidos pelo próximo ato de entretenimento, com pipoca na mão e pagando ingresso caro para releitura do mesmo roteiro.
No picadeiro, novos rostos; na bilheteria, os de sempre.
Detalhe importante: se falam o que queremos ouvir, não ouvimos o que deixam de dizer.
Há essa zona cinzenta entre o que queremos ouvir e o que deveria nos ter sido dito. Essa área sombreada, entre a reticência do pensamento e as frases de agrado, nos dizem mais do que os discursos fáceis. Onde estão as palavras não ditas? Onde está o discurso lógico que nos foi poupado? Queremos o amargo medicamento curador ou os sorrisos agradáveis dos visitantes ao leito do moribundo? Se jogam para a plateia, esta reage com aplausos ou vaias, da catarse coletiva voltando para casa, satisfeita, após ter chorado ou cantado junto à multidão – e nada muda.
A pós-verdade nos delega a aparência do que desejamos e nos deixa com a vitoriosa sensação de que levamos o candidato ou governante a nos dar satisfação do que desejávamos ouvir. Noutro foco, talvez tenhamos sido levados a escutar o que queríamos e não o que precisaríamos – e que um estadista nos diria.
Ao assumir, Churchill prometeu aos ingleses “sangue, suor e lágrimas” diante dos Nazistas. Não se falou o que o povo desejava, mas o que precisava ser dito. Havia a dimensão do choque de realidade e o senso de responsabilidade. O resultado levou a Inglaterra a fazer a Operação Dínamo e, na maior retirada estratégica, salvar mais de 300 mil soldados, evacuando-os por Dunquerque, usando para isso navios de guerra e barcos particulares. Adiante, pôde dar rumo à Invasão da Normandia e à vitória dos Aliados sobre os Nazistas.
Contudo, como se receberia, aqui, fala como aquela? Talvez bom exemplo esteja em antiga estória contada por Carlos Lacerda, dizendo que JK ganhou a eleição por vários motivos, enquanto o Juarez Távora a perdia, nos comícios conclamando o povo a “trabalhar muito”, a ponto de se formar anedota política, dizendo que ao final do discurso o povo trabalhador ia embora dizendo “´-já começou a perseguição”.
Vivemos tempos difíceis, porque faltam estadistas e sobram falas agradáveis e acusações a terceiros. Menos se diz sobre o que deve ser feito e como se fazer do que sobre o que o outro fez ou não – e mais se joga para a plateia, sedenta de entretenimento e de curtidas em redes sociais. Já às primeiras palavras, as pesquisas apontam indicadores e esses são potencializados por outros, num crescendo. São dados que alimentam dados sobre dados, os quais já nascem contaminados pela pós-verdade, pois alvitram dizer o que queremos ouvir. A realidade nem sempre agrada ou gera curtidas e o importante, atualmente, parece ser a aprovação alheia e a satisfação do momento.
Nossa individualidade se esvai pelo coletivo e seguimos inseguros, trilhando caminho para que gostem de nós e nos retribuam os gestos estudados que fazemos. Deixamos de ser indivíduos que tem reações humanas naturais e que choram, gritam, gargalham, andam, cambaleiam, caem e se levantam – para seguir em frente. Nas redes sociais desfilamos, sorrimos, brindamos e estamos sempre produzidos, como se a vida fosse só isso. Para compensar o nosso descompasso com a realidade, salvam-nos os remédios para dormir e os equivalentes para nos anestesiar durante o dia.
Dos programas de auditório das décadas passadas às atuais séries de TV, somos entretidos com eficácia. Hoje, cada vez mais, diante dos dados que nós próprios fornecemos aos sistemas inteligentes das grandes redes… No passado, os poderosos arrancavam, à força, as informações que desejavam. Hoje, voluntariamente alimentamos sites e aplicativos com informações pessoais e, cada vez mais, somos controlados, sem perceber.
O futuro está mais previsível, a manipulação é maior do que jamais foi e já damos todas as pistas do que queremos ouvir – e ouvimos. Basta fazer uma pesquisa qualquer na internet e logo começamos a receber retornos sobre o local ou o objeto pesquisado. Curioso como estamos disponíveis a isso…Viramos consumidores dos produtos veiculados por marqueteiros e votamos por essa influência, seduzidos por meras versões dos fatos. Até quando?
Nessa linha, discutir política, ideias e propostas deixou de ser o lógico – pois quem acha que está certo com a sua versão, assim seguirá. A polarização é fator não desejável, na política com P maiúsculo que os gregos nos legaram, se bem compreendemos que a ética e a política tinham por objetivo, respectivamente, a felicidade humana e a felicidade (coletiva) da polis.
Que as crianças não polarizem nos colégios a ponto de brigar no recreio e que, nós, adultos, não tenhamos atitudes infantis de brigar em família, no trabalho e nas ruas, sem nos permitir debater as ideias, a partir da realidade. Que não concluamos ser inúteis as discussões, pois isso significará o sepultamento da nossa capacidade de ouvir e de falar.