Existem várias fontes de sedução. O Poder é uma delas.
Dizem que transforma as pessoas, embora pareça apenas revelar a essência e o que vai no íntimo de cada um, em qualquer tempo e lugar do mundo, pois muitos se sentem mais à vontade ao não precisar dar satisfações e manter as máscaras que utilizavam antes de assumir certas posições de mando, seja no âmbito privado ou no campo das políticas públicas, notadamente a partir do momento em que passam a interferir nos destinos alheios e a influir nos rumos dos acontecimentos. Aliás, o receio de sair da posição central leva a outras manifestações de poder.
Curiosamente, na ambiência dos estados democráticos, eleitos juram cumprir a Constituição, antes de poder atuar como plenipotenciários.
Portanto, se há o juramento de se cumprir a Carta Política, é evidente que o desvio de finalidade no exercício das ações é hábil instrumento a revelar o descumprimento do primeiro juramento. Ademais, a questão será mais complexa quando, de antemão e na reserva das reticências do pensamento, se jurou cumprir algo que se pretendia ostensivamente descumprir. Essa lógica serve para várias situações e governos variados, na medida em que a Constituição foi feita para definir o modo de ser do Estado e a forma com que devem funcionar as instituições, os direitos fundamentais e sociais, a repartição constitucional de competências, etc. Nesta senda, o sistema de freios e contrapesos oferece a dose desejável de equilíbrio entre ação e reação, instrumento que, contudo, no mundo todo, só funciona se todas as formas de poder estiverem altivas.
Além das regras e sistematizações, o cotidiano das práticas e ações concretas é que chama a nossa atenção e, muito além da contemplação, exige a participação de cada um. É a atuação de cada um (eleitos e eleitores, governantes e governados, sociedade civil, organizações sociais, imprensa, trabalhadores e empresários) que produz a quintessência. Para isso, é necessário que haja plena liberdade de ação e de expressão da opinião, transparência e acesso a informações, certeza de que ações antijurídicas serão tratadas como tal e não apenas como erros acobertáveis, etc.
A ideia republicana, que carregamos desde o fim do regime monárquico e o início do sistema de res publica, no Brasil inaugurado em 1889, é bom norte a nos ajudar a perceber os jogos de poder. A má gestão afeta aqueles privados de tudo, com a simbologia de que cada centavo desperdiçado, sob qualquer ótica, retira algo de cada brasileiro e atinge os mais vulneráveis – com mais rigor. É de cada um que se fala, quando cada centavo se perde, quando uma voz é calada, quando um destino é afetado, quando um emprego é perdido e quando uma empresa encerra as portas. A corrupção é mola propulsora disso, mas não é a única causa do desperdício.
Por isso, o poder não pode significar distanciamento dos conceitos mais elementares e empíricos, na dura realidade, de cada alma da Nação. No Regime Federalista, na República e na Democracia, cada um é o dono do todo, inclusive pela frase expressamente grafada no texto constitucional, indicando que poder emana do povo.
O Democracy Index 2019 indica que quase todos os países autoritários estão situados entre os Trópicos de Câncer e de Capricórnio. Seria uma coincidência climático-geográfica?
Muito além de locais, há aspectos filosóficos profundamente enraizados nos grupos sociais. Nem todas as culturas e povos têm histórica vocação para o que chamamos de democracia e, decerto, não podemos ser inocentes a ponto de criar imagens atávicas que substituam a realidade. No entanto, isso não significa admissão de assombros autoritários e antidemocráticos, não apenas nas posturas e discursos mas, principalmente, nas práticas, notadamente quando a nossa Constituição nasceu como resposta corretiva contra o passado recente.
Sabemos que, dessa pira simbólica, nasceu um texto constitucional com forma e conteúdo de Estado Democrático de Direito, com fundamentos na cidadania, na dignidade da pessoa humana, na livre iniciativa e no pluralismo político (art. 1º), com harmonia entre os 3 Poderes (art. 2º) e o objetivo de construção de sociedade livre, justa e solidária, com redução de desigualdades e promoção do bem de todos (art. 3º), sendo todos iguais perante a lei, não sendo obrigados a fazer algo não previsto em lei, tendo livre manifestação de pensamento e não se podendo ser privados dos seus direitos, por motivo de crença religiosa ou convicção filosófica ou política (art. 5º). Essa é a medida constitucional e qualquer ação tendente a reprimir tais disposições corresponderia a ofensa a fundamentos e valores inegociáveis.
Por qual motivo suscitamos tantos aspectos e nuances, relativos ao exercício do poder, em face de privações a tantos? A nossa Constituição já tem mais de 30 anos e, nesse período, várias forças políticas se alternaram no Poder. Daí para trás, outras tantas, na República. Mesmo assim, ainda temos muitos problemas graves e estruturais – que conseguiram, surpreendentemente, sobreviver aos tempos!
Uma parte desse imbróglio está na incompreensível fluência de gestões que nos fizeram andar em círculos, tentando inovar sempre, padecendo de certa necessidade de aderir a novos métodos de se tirar coelhos da cartola. A população fica perdida nessa espiral de ideias mirabolantes. Andando em círculos, não se vai adiante.
Parte disso está no singelo exemplo dos ônibus elétricos e bondes que circulavam por grandes cidades há 50 anos e que foram substituídos por poluentes e barulhentos ônibus… bondes, aliás, do mesmo tipo daqueles que, ainda hoje, circulam em cidades da Europa. Noutra ponta, temos dependência do trigo, desde o início do Século XX e uma vocação extraordinária por trazer (ou aceitar) ideias vindas de fora, por vezes tão extravagantes quanto a importação de patins de gelo para a quente capital do Império: o Rio de Janeiro.
Nada deve ser interpretado como compartimento estanque e individualizado, como se cada parte tivesse, por si só, plena capacidade de nascimento, existência e morte. Isoladamente, pouca serventia tem uma peça do jogo, cada uma encontrando a plenitude do seu significado e valor quando se encaixada no todo, do qual faz parte. Neste rumo, precisamos de estabilidade, paz e segurança jurídica e de menos ações midiáticas. Necessitamos de planos plurianuais de investimento, programas que não sejam interrompidos ou sucedidos por outros com nomes diferentes, crescimento econômico e melhor distribuição de renda, etc.
Maria Antonieta teria dito para o povo, faminto, comer brioches em vez do pão tradicional… Simbolicamente, nos discursos tão discutidos, os brioches equivalem às picanhas ou a outras expressões que sejam vigorosas quanto à força simbólica das palavras. Alheio a isso, o povo quer comida no prato, que não virá sem apoio e incentivo aos que produzem os alimentos e aos que os transportam, distribuem e as industrializam. Sem indústrias e comércio fortes, a moeda, a economia e os empregos se esfarelam.
As bases dos edifícios começarão a ruir se os alicerces não forem cuidados, se as fontes não forem tratadas, se os créditos não forem garantidos, se a dívida pública não for honrada, se o povo não se mantiver unido como uno e indivisível e se as ações não forem integradas e permanentes. Sem isso, não venceremos dificuldades históricas, dividiremos a sociedade e nos enfraqueceremos.