Para termos a compreensão jurídica, histórica e política dessa decisão, fazemos menção à da Lei da Anistia Política (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979) que, como se perceberá desde sua nascente, traduz-se em anistia de memória (anamnese), em nada admitindo uma efetivação baseada no esquecimento (amnésia), confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 153 – abril de 2010), por último e, em definitivo, como uma anistia de condenações na ação performativa de memória e verdade, permitindo reparação e responsabilização, daqueles que, sob a bandeira da ditadura militar, aplicaram quaisquer violências aos cidadãos, negando-lhes a observância devida de seus direitos humanos. À época da promulgação da mencionada lei, o ambiente político era outro, com pessoas exigindo a investigação dos fatos produzidos na penumbra, reconhecer dignidade humana um dia ultrajada. As pessoas, em sua dignidade, podem padecer dos sofrimentos correlatos à sua violação, mas nunca, lhe ocorre a diminuição e tampouco sua concessão institucionalizada (SARLET, 2007).
Registramos, para efeitos de acompanhamento cronológico do tema, as Leis 9.140/95 (cria a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) e 10.559/02 (cria a Comissão de Anistia) conduzindo-nos à Lei 12.528/11 – Comissão Nacional da Verdade; sendo esta última, o momento doloroso, que requer empatia sem máscaras, com o cuidado de não proporcionar revitimização, mas reencontrar os agredidos, os parentes de agredidos mortos, os parentes de agredidos desparecidos, os representantes do Estado para um encontro, face a face, sob o manto da lei, na busca pelo implemento da cura nacional. É a experiência nacional em suas muitas caravanas projetadas e realizadas pelo Brasil. Prática muito custosa, muito da escuridão, da dor e do isolamento, vivenciados nesse período triste da história nacional, é reconstruída para um fim de regeneração de um novo momento-cidadão mas, ressalte-se, este é um especial e exclusivo momento singular, imposto constitucionalmente, capaz de realizar o processo transicional através da operacionalização da reparação, da memória e da verdade. Houve a necessidade de prova, por parte dos interessados, quanto ao conteúdo dos requerimentos que sustentavam o pedido de declaração de anistiado com vistas às reparações financeira, trabalhista, educacional e documental (principalmente a emissão de certidões de óbito). Como incipientes pesquisadores, move-nos o cuidado e respeito pelas Clínicas de Testemunho, cujo efeito terapêutico, em dimensões amplas que talvez nem as reconheçamos agora em sua totalidade. E, nestas se dava o pedido oficial de desculpas do Estado Brasileiro pelas levianas perseguições lançadas às vítimas e seus familiares … era o momento de resposta pública ao choro sufocado, a dor abafada, à perspectiva nula de sobrevivência … agora, em uma sala pública, em um encontro de verdade com uma outra realidade, construía-se uma memória coletiva e nacional, garantindo-se o registro e a promessa de não repetição. Mas até isso, em um novo sentir distante e inadequado, foi alterado em abril de 2018, quando o Ministério da Justiça baniu tal possibilidade restaurativa. Estas são as linhas imediatas trazidas de A transição brasileira – memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021) – Prof. Dra. Eneá de Stutz e Almeida. Esses mecanismos e procedimentos previstos na Lei Constitucional – art. 8º o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e suas consequências jurídicas acima referidas, são denominadas como Justiça de Transição, sim, transição do estado ditatorial, que se fez conhecer e agir por uma regulamentação ilegítima e imprópria – excetuando-se juridicamente, daí a denominação “Estado de Exceção” – para a ocorrência sócio-política-jurídica de um Estado Democrático de Direito. Os vitimados, as vitimadas, que passaram por tortura, perseguições, sequestros, assassinatos, massacres, abusos promovidos nos calabouços, florestas, repartições públicas, nos rios e oceanos, nas próprias moradias, fizeram morrer mais de 8.000 brasileiros por ações do Estado Ditador (STUTZ E ALMEIDA, 2022, p. 36). Esses “pacientes” são aquelas (es) que por motivação exclusivamente política foram atingidos nas dimensões do físico, do anímico, do social, do espiritual …, seres que experimentaram o ignóbil, o cruel desnudo, produzido por, geralmente, muitos outros semelhantes seus, em condições absolutamente desproporcionais.
Eneá de Stutz e Almeida insiste que para a fundada análise da anistia brasileira é necessária a admissão de que houve um estado de exceção … “é fundamental reiterar que o pressuposto básico para toda e qualquer discussão sobre os temas da chamada justiça de transição é precisamente o fato de que o Brasil esteve sob um estado de exceção a partir do ano de 1964” (STUTZ E ALMEIDA, 2022, p. 8). Pressuposto este guerreado e confrontado de forma contínua e mais notoriamente neste governo iniciado em 2018.
Isso coloca o processo de transição política na dimensão da inefetividade entre o autoritarismo ditatorial e a sociedade democrática. Em 1979, ainda sob o governo da farda, o debate político era cerceado e, já na abertura política que ocorre com a convocação da Assembleia Constituinte – Emenda Constitucional 26/1985, a pretensão da abordagem estatal em relação ao período de governo militar e suas sequelas foi renovada inobstante às reiterações quanto ao “deixar ficar pra trás o ocorrido” como se fosse uma inspiração normativa nacional a opção pela anistia do esquecimento. Pela lógica do esquecimento, a verdade objetiva estava desprovida de ser buscada. Tudo em um ato de amnésia coletiva, seria lançado no “mar do esquecimento”, sugerindo haver esquizofrenias passíveis de tratamento, como qualquer doença, mas não tendo sido produzidos tais crimes pelos agentes do Estado.
Os registros mentais da nação imersa em um flagelo de violência, desconsideração do ser opinante, no exercício da pluralidade coletiva, sem diminuição da singularidade cidadã, estavam bem guardados, e o país necessitava de um outro tempo social de memória “(…) que ressignifique uma postura de valorização da vida, da igualdade e da liberdade e que insurja contra a repressão e o autoritarismo é um dos objetivos desse fundamento.” (STUTZ E ALMEIDA, 2022, p. 22).
Stutz e Almeida indica Ost:
Assim, parece que a democracia deve permanentemente precaver-se de dois perigos opostos: ou a exacerbação do conflito ou sua ocultação. No primeiro caso, sem acordo sobre uma regra de jogo comum, sem referência ao mínimo de valores compartilhado, a parte degenera e leva à exclusão ou à destruição do adversário, tratado então como “inimigo”: privado do mínimo de confiança, pressuposto pela promessa que ata ao futuro, o jogo político se estreita. Ao inverso, quando às divergências de interesse são ocultadas, e as oposições minimizadas, atrás de consensos de fachada, é grande o risco de que se veja desenvolver futuros focos de violência. É, sem dúvida, um dos riscos ligados atualmente à instauração, em todo o planeta da “democracia de mercado” e do pensamento único que a acompanha (grifos nossos) – (OST, 2005, p. 315).
Até a data da elaboração deste trabalho, a inquietude geral sobre os acontecimentos havidos na “época da ditadura” e as respostas produzidas pelo Estado em sabidas ações e declarações distorcidas, negacionistas … mentirosas mesmo, ainda perduram. Um mal não resolvido na cultura institucionalizada nacional com fortes tendências ao desmonte do nosso precário Estado Democrático de Direito, gerando confusão, mais ignorância, preconceito, criminalizando as tentativas de construções participativas comuns da vida social. Na voz da Ministra Carmem Lúcia, na emissão do seu voto na ADPF 153 (p. 3), “(…) o Brasil ainda procura saber exatamente a extensão do que aconteceu nas décadas de sessenta, setenta e início da década de oitenta”. Que os tempos sejam tenebrosos, não há quem advogue contrariamente, mas como dizia Ulisses Guimarães, “navegar é preciso”. A retomada da justiça de transição autêntica é desejada e perseguida por aqueles que não negociam os instrumentos que possibilitam sua construção: memória/verdade e a reparação. Tem-se a garantia quanto a imprescritibilidade, quanto à análise judicial dos danos decorrentes de violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar (RE 1836862 – SP – 2019/0268276-9). Repita-se: a Lei de Anistia é uma lei de memória porque não apagou os fatos (esquecimento) ou eliminou as condenações jurídicas. Esse trato jurídico instituído constitucionalmente precisa ocorrer sob a hipótese de não ser eficiente a transição democrática brasileira e, desde 1979 (42 anos), nenhuma reparação via condenação criminal foi proferida, e essa relação Estado e Sociedade precisa ser solidária e democraticamente estabelecida com a observância fidedigna dos protocolos ou mecanismos que compõem a justiça transacional: “1) o binômio memória e verdade; 2) a reparação integral; 3) a reforma das instituições; e, 4) a responsabilização ou justiça, e que também pode ser explicitado na expressão persecução aos violadores de direitos humanos.” (STUTZ E ALMEIDA, 2022, p. 29).
Não são essas as percepções respeitadas pelo atual Governo que, como no início desta narrativa, indeferiu o requerimento de Roussef, que não crê que houve no Brasil um Estado de Exceção, tenta desestimular o uso da linguaguem aos que pretendem falar de suas agruras, e o contra-senso-jurídico faz opção pelo esquecimento. Não reside em nós a pretensão de advogar teoricamente a negativa governamental aludida, cuidamos fazer-lhe referência e preservá-la como mais uma exemplo das múltiplas violações ocorridas nestes últimos quatros anos da história-pátria. Há muito o que conversar … diga-se com equilíbrio, elemento tão distante do uso governamental destes conturbados dias. O direito desempenha o papel de guardião da memória social e esta se reproduz como fonte do direito, das regras, dos processos, das prerrogativas, cuja antiguidade seria o título de legitimidade?
Acreditamos que sim.
Acreditamos também em um futuro anterior – no qual retornamos ao passado para poder prosseguir e alcançar promessas – um fenômeno trans-histórico definido pelo nexo entre o direito e a língua, evoluindo-se na pulsão de vida da consciência popular. O direito e a língua estão imunes à parada total … usufruem tendências de regeneração incessantes. Com os mortos no período das trevas, pólvora e covardia está Eduardo Leite e com ele nos despedimos.
Já se vai longe a hora … já é madrugada e não sei como te encontro.
Ferido, com fome, sede e frio; tudo está tão escuro … sozinho por certo.
Vim para te abraçar … para te dizer que consigo ouvir teus gritos.
A você, Eduardo Leite, nosso Bacuri.
Convidada
Lêda Simone Lima Rodrigues.
Especialista em Auditoria Interna.
Mestranda em Direito – UnB/IFAP.
Convidado
Marlúcio de Sousa Nascimento. Especialista:
Gestão e Docência do Ensino Superior.
Direito Constitucional.
Mestrando em Direito, Estado e Constituição – UnB/IFAP.