Mais do que as famosas procissões sobre tapetes coloridos, moldados com serragem, borra de café e grãos, a data é um convite à reflexão sobre a obra que o Filho de Deus nos deixou, afinal “É pelo dom da fé que acreditamos no Senhor ressuscitado, vencedor da morte e do pecado. E que acolhemos sua contínua presença entre nós, sobretudo quando estamos unidos em seu nome. É pelo dom da fé que celebramos a Eucaristia, cumprindo o mandato do Senhor: ‘Fazei isto em memória de mim’, e que acreditamos na sua presença real na hóstia consagrada, o Corpus Christi” (Ir. Ivo Antonio Strobino).
E é neste contexto que outra reflexão passa em meu pensamento, afinal na noite de ontem (15.06.2022), em entrevista coletiva, as autoridades policiais anunciaram que o pescador Amarildo da Costa Oliveira, também conhecido como “Pelado”, confessou que matou e enterrou os corpos do indigenista Bruno Pereira (41) e do jornalista britânico Dom Phillips (57). Ocultou os cadáveres mata adentro, cerca de 3 quilômetros da margem do Rio Javari, localizado no Estado do Amazonas, fronteira com o Peru e a Colômbia, uma área de difícil acesso, que abriga a maior concentração de povos indígenas isolados do mundo.
Outra vez o Brasil – e particularmente a Amazônia – é objeto de notícia ruim, que repercutiu mundialmente, dando visibilidade a 1) um indigenista brasileiro, Bruno Pereira, servidor de carreira da FUNAI, considerado um dos maiores especialistas em indígenas isolados do país, que vinha denunciando ameaças de morte sofridas em razão do trabalho desempenhado em favor dos povos indígenas daquela região; 2) um jornalista britânico, conhecido internacionalmente, Dom Phillips, que estava escrevendo um livro cujo título “Como salvar a Amazônia” externa seu comprometimento com nosso Brasil; 3) um grave problema que bota o país na contramão de direção das políticas e dos anseios globais, que é a forma como lidamos, nos últimos quatro anos, com as questões ambientais da floresta amazônica e dos povos que a habitam.
Com o título “Tragédia no Javari tem a digital da necropolítica brasileira” o Observatório do Clima traduz a grandiosidade do caos situado por detrás desse fato: “O Brasil, um dos países que mais matam ativistas ambientais no mundo, vê se repetir no Javari a tragédia de Chico Mendes, Dorothy Stang, Zé Cláudio e Maria e tantos outros que confrontaram e confrontam os criminosos que atormentam os povos e saqueiam a floresta na Amazônia”.
Existe neste episódio muita coisa ainda sem resposta. Elas certamente virão pelas investigações dos órgãos competentes e os culpados serão punidos. Mas não podemos simplesmente encarar essas mortes com naturalidade, classificá-las apenas como mais um caso de crime comum (homicídio qualificado e ocultação de cadáver), porque crimes comuns não são diante de todo cenário que o circunda. Também não podemos nos contentar tão-só pela justiça que se buscará e espera-se fazer em face dos mandantes, executores e partícipes. Isso tudo é importante, mas lembremo-nos que calaram-se vozes que vinham denunciando às autoridades brasileiras e ao mundo o tratamento que o Brasil dispensa aos índios e à Floresta Amazônica, e isso é uma pauta de Direitos Humanos que desloca o interesse para outro nível de discussão e debate.
Bruno estava denunciando as ameaças. Isso, por si só atrai, por omissão, seus superiores hierárquicos e demais autoridades que tinham o dever de agir para evitar o mal pior, afinal eram ou não garantidores de seu servidor? Ao invés de garantir-lhe o trabalho, exoneraram-no do cargo que ocupava e o deslocaram da selva, que era o habitat onde ele queria estar, para bem longe dali, a sede da FUNAI em Brasília. Quantos outros Brunos estão denunciando o mesmo caos? O que se está fazendo concretamente diante dessas denúncias? O que farão a partir de agora a FUNAI, o Exército e a Marinha do Brasil, a Polícia Federal, governos, parlamentos, judiciários (o CNJ instalou grupo de trabalho – https://www.conjur.com.br/dl/cnj-grupo-trabalho.pdf – e vamos esperar para saber quais propostas virão para aprimorar a atuação de magistrados nessas questões).
Fico pensando se os indigenistas amapaenses enfrentam os mesmos problemas de humilhação, perseguição, agressão e ameaça pelo simples fato de lutar para preservar e manter a floresta e toda sua riqueza nas mãos de gente que habita este território antes mesmo da chegada dos colonizadores portugueses/espanhóis, povos da floresta, que sempre utilizaram e utilizam os reursos naturais com parcimônia e sustentabilidade, vistos como entrave às pretensões de traficantes (de drogas, de animais, etc), de garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais, de madeireiros e pecuaristas inescrupulosos, que através de grileiros e toda a sorte de estrutura ilícita que gira no entorno dessas atividades avançam diuturnamente como protozoários leishmania sobre o tecido verde da região Norte, destruindo tudo, bem devagar, em busca do lucro extraído de nosso maior patrimônio, a maior biodiversidade do planeta.
O que fazer para empoderar esses brasileiros e brasileiras invisíveis até que aconteça nova desgraça? Como trabalhar rapidamente quando um profissional de linha de frente relatar irregularidades? Deem-se ouvidos aos clamores de Bruno proibindo e tirando as pessoas que não tem autorização para estar nas reservas e terras protegidas por lei. Esse pode ser um começo interessante e neste mister digno de registro o trabalho preventivo que a Brigada da Foz (22ª Brigada de Infantaria de Selva, sediada no Amapá) vem realizando com a finalidade executar ações preventivas e repressivas contra crimes transfronteiriços e ambientais, além de atuação de assistência hospitalar (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-11/operacao-agata-intensifica-acoes-na-fronteira-com-guiana-francesa). Com planejamento, a execução deste trabalho preventivo é de extrema importância e deve ser realizado periodicamente.
Façamos audiências públicas. Mapear problemas e dificuldades. Cobrar soluções de quem de direito. Ficou para trás a ideia de que índios eram povos sem Deus e sem lei, apesar de possuir alguma organização social (ideia colonial). Chega de colonização. Foi-se o tempo do paradigma tutelar e das políticas de integração harmoniosa dispensado aos povos originários (pensamento anterior a 1988). Há trinta e um anos a Constituição editou novo comando para a política indigenista brasileira, consolidando um Estado pluriétnico a partir de capítulo especialmente dedicado aos povos indígenas, a quem é devido o respeito as formas de organizações, seu modo de vida e cultura.
Precisamos compreender que há diferença entre o direito indígena e o direito indigenista. Aquele, originário, anterior ao próprio Estado, nascido do chão da aldeia irradiando pelo território para além de seu aspecto físico, alcançando o patamar espiritual, elevando não só os indígenas, mas também as plantas, os animais, as águas e os seres encantados que ali habitam à categoria de sujeito de direitos daí porque não podemos destruí-los como estamos fazendo; este, um conjunto de normas elaboradas pelos purutuyê – na língua Terena o não indígena, o homem branco – para os indígenas, tal como o Estatuto do Índio (Lei n. 6001 de 1973), a Convenção 169 da OIT, a Constituição Federal de 1988, especificamente nos artigos 231 232, e vários outros dispositivos legais esparsos pelo ordenamento jurídico brasileiro (cf. O direito que nasce da aldeia. LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO. In O Direito Achado na Rua : Introdução crítica ao direito como liberdade. organizador: José Geraldo de Sousa Junior [et al.] – Brasília: OAB Editora ; Editora Universidade de Brasília, 2021, págs. 481-87).
Esse coletivo precisa ser ouvido. Precisa ter voz, porque como relata o Advogado indigenista Terena, Doutor LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO (supra citado), ao trabalhar uma oficina de direito com professores indígenas, explicou que pela pirâmide de Kelsen a Constituição está no ápice do ordenamento jurídico e abaixo dela as demais legislações encontrando-se os direitos dos povos indígenas dentro da própria Constituição, ouvindo do professor Kaiowá o seguinte: “No nosso direito, nós temos também uma pirâmide parecida com essa, só que ela está ao contrário, pois o direito de nós, guarani Kaiowá está lá embaixo, sendo desrespeitado e pisado por todos”. Em outras palavras, o direito dos índios está no ápice da pirâmide, só que atualmente essa pirâmide está de cabeça para baixo, pois temos pisado nesses direitos seguidamente, prevalecendo apenas o direito do não índio, ou seja, o direito burguês, o direito daqueles que só enxergam o lucro.
Finalizo procurando uma interseção entre as duas reflexões. Assim, na fé de que o Cordeiro de Deus não foi imolado em vão, porque ressuscitou e venceu a morte e o pecado ao final, continuando presente entre nós, desejo sinceramente que o sacrifício de Bruno e Dom também não tenha sido em vão, que possamos entrar em comunhão com suas ações e pensamentos, seguindo seus exemplos de vida como norte e paradigma no intuito de consolidar discussões sobre direitos humanos, contribuindo para um protagonismo humanista que leve a recriação de espaços através das lutas em favor das comunidades indígenas e daquilo que ainda resta da Floresta Amazônica. Ainda há tempo e é o que eles sempre fizeram e gostariam que continuássemos a fazer.