A Amazônia não me modificou, deu-me o que procurava. Fui para lá por perder uma filha… Antes, tive uma passagem de três anos pelo Nordeste, para participar da construção de barragens destinadas a minorar a seca. Fiquei indignado com a falta de programas e de prioridades, e com a corrupção. Desvio de dinheiro é melhor não falar, tornaria o contexto do livro. Deixo isso constado na minha experiência no Projeto Sertanejo, que lá deveria ser executado. Enojado com a indolência, irresponsável venalidade e falta de compromisso com o bem público, prometi a mim mesmo não mais voltar a lidar com qualquer órgão de administração oficial.
Peguei meu avião, poucos panos de bunda, e fui. Lá, concluí que só se é escravo de uma situação, em um determinado sistema, quando impossibilitado de fazer aquilo que se gosta e quer. Felicidade plena é viver e cumprir o apelo interior, independentemente do poder material que possa ter. Alcançar esse objetivo é maravilhoso! A Amazônia dá oportunidade para isso a qualquer um. Fazer o que se pretende com satisfação é viver melhor, e essa grande diferença pode ser sentida em qualquer lugar do mundo. Na Amazônia não há exigência de “ganhar”; você tem mesmo é que produzir, objetivamente, podendo até sonhar. Não se trata de valorização ou prioridade do primitivo.
Não adianta dispor-se de apurada formação acadêmica de acordo com a orientação educacional da civilização moderna. Se desconhecer o lado prático, o diploma poderá ser uma nulidade. Exemplos demonstram isso, como a grande derrota de Daniel Ludwig, rodeado de diplomados, e com o maior capital externo investido na Amazônia, até hoje. Em uma feliz ocasião tive a oportunidade em conhecê-lo. Corria o mês de março do ano de 1967. Tomamos o café da manhã juntos, às cinco e meia, escuro ainda, no Hotel Vanja, na cidade de Belém do Pará. No salão mais ninguém além de nós. Os trinta minutos de café matinal transformaram-se em uma longa conversa sobre a Amazônia e o Brasil. Ludwig implantava o polêmico Projeto Jarí.
Já passara dos setenta, e ainda demonstrava vigor incomum. Apresentava um juvenil lado sonhador para seus empreendimentos, e para a própria vida. Fazia e contava planos mais que vintenários, como se ele fosse eterno. O Jarí foi uma das maiores realizações que pude conhecer na Amazônia, secundado pela Fazenda São Raimundo, que se tornou a maior produtora do mundo de arroz e peixes pirarucu criados em cativeiro. E tudo se acabou com o descompromisso a acordos anteriores de nosso governo militar, ao não lhe entregar, com o projeto já instalado, os títulos de propriedade das terras onde tudo estava assentado.
Um vergonhoso e desonesto acontecimento estribado em um nacionalismo politicamente incorreto. Um grande empreendedor se foi magoado. Mr. Daniel abandonou o Brasil em 1977, mas deixou memórias indeléveis.
Henry Ford, em 1926, também perdeu, depois de determinar que seu negócio era borracha. Foi lá para plantar um mundo de seringueiras, mas apenas deixou na Fordlândia as privadas que trouxe. As tampas eram automáticas. Bastava levantar e elas davam descarga, sozinhas. Novidade boa; trouxe para a região a possibilidade de defecar com higiene. Os negócios foram todos abandonados.
Há muito que se aprender na região Norte. As pessoas não param nunca, e, no entanto, não se pode dizer: “Conheço a floresta como a palma da mão”. Ninguém dispõe de tempo suficiente para viver e conhecê-la. Durante o período de vida, ainda que se dedique exclusivamente a isso, muito pouco se conhecerá dela.
A Amazônia nada oferecerá, nem longo abrigo a quem apenas vier destrui-la imbecilmente, sem nenhum conhecimento. Obra de Deus feita para atrair o homem a si, e permitir ser carinhosamente extrativada. Os garimpos conquistaram a região, e lá estão, embora sempre com período limitado. O inteligente não luta contra garimpeiros. Botar para fora, escorraçar, é bobagem. Deixa quieto, se honrada é a intenção, o ouro vai acabar! Eles vão sair e a necessária alternância de emprego estará garantida, com a chance de aprendermos vendo o homem vencendo a sorte.
Fui um dos primeiros a chegar a Serra Pelada, logo que se anunciou a descoberta. Lembro-me de uma turma que achou duzentos e poucos quilos de ouro. Colocaram-no dentro de um balde de óleo de caminhão de vinte litros, no qual cabem duzentos e sessenta quilos de ouro. Ninguém aguentava levantá-lo. Não havia nenhuma alça. Um peso desses? Saíram rolando o balde, com os pés, pela pista de pouso. Eram pessoas humildes, pobres quando chegaram e deram no ouro. Os cinco trabalhavam no barranco ou cava que produzia bem, estava dando ouro.
Empregavam aqueles carregadores de saco que eram vistos nas fotografias como garimpeiros, mas se tratava de trabalhadores braçais em minas, conhecidos como saqueiros, que formavam a maior população de contratados nos garimpos. Os garimpeiros verdadeiros proporcionavam cerca de vinte mil empregos ao pessoal. Chegados à riqueza, o que se sucedeu foi notável. Depois de toda a dificuldade que passaram, sete meses cavando, reagiram de forma surpreendente. Sentaram-se dois na frente e três atrás, e começaram distribuir o valioso metal.
Pediram para os saqueiros fazerem uma fila. Nenhum garimpeiro, ninguém dos outros barrancos entrou na fila para ganhar o que se dava: ouro. Só mesmo os saqueiros, e não havia polícia, ninguém para ordenar nada; nenhuma briga. Fato este, acontecido em Serra Pelada, antes da administração federal chegar.
Já formada a longa fila, os bafejados pela fortuna arrumaram-se para a entrega. Três atrás, não participando da entrega direta; dois na frente, cumprimentando e fazendo a doação. Os cuidados eram tantos que a retaguarda tratava que o punhado de ouro apanhado para cada um tivesse igualdade. Devem ter distribuído mais de vinte quilos. Bem verdade que estavam tirando trezentos ou quatrocentos quilos de ouro, mas, ainda assim, duvido que um fato desses aconteça em outros lugares.
Brigas só depois, e contra o governo; entre eles, nenhuma.
Sempre duvidei também que empregadores, empresas brasileiras e estrangeiras instaladas no Brasil, aceitassem uma legislação que permitisse a participação dos empregados nos lucros diretos da organização. Os lucros das nacionais são sempre contaminados pelos custos e pelos caixas dois, três, quatro. Já quanto às internacionais, não sei como fazem. Provavelmente sua divisão financeira dará sempre mais lucro que a industrial. A agiotagem do resultado do bem que a empresa produz e vende, costuma proporcionar maiores ganhos que o ato fabril.
Já vi garimpeiros abandonarem fortunas, e carregarem companheiros que se machucaram, entretanto, nunca os vi ajudando a quem não trabalhasse. Isso me faz lembrar dos grupos que não se enquadram no garimpo. Os habitantes do estado de povo musical e mais “feliz”, que não são vistos na Amazônia, talvez porque ali é trabalho pesado, não muito do agrado de muita gente.
Tudo um outro mundo, outra realidade muito longe de ditames governistas e sua gente, um singular formidável.
BH/Macapá, 02/06/2024
José Altino Machado
Nota: Capítulo do livro do autor- “Os bundas doidas”