Ao contrário do que a maioria imagina o chamado povo, que no Brasil representa a grande massa trabalhadora que labuta diariamente de sol a sol para sobreviver com o mínimo e mísero ‘salário mínimo’ não tem muito tempo disponível para acompanhar as notícias, quando muito assiste o noticiário, tão desacreditado, das redes de TV. As notícias lhes chegam por vias transversas confirmando as agruras que passa. Os mais favorecidos, também anestesiados não param para imaginar ou raciocinar a impossibilidade dos menos favorecidos de viver, apenas sobrevivem. Uma tragédia é que não pode ser melhorado para não comprometer as contas públicas.
O tal ‘salário mínimo’ em vigor sequer cumpre o estabelecido na Constituição (Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados).
Algumas ações de governo via de regra desagradam o povo de qualquer país e o desagrado vai se acumulando e refletindo nos governos. O amigo Rogério Reis Devisate, Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras, Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, no artigo “Anonimadas intenções”, que transcrevo trechos, publicado, em 30.06.2024, na Gazeta do Amapá.
“Sempre há coletivo de sentimentos e intenções anônimas. O silêncio eventual de parte da sociedade ou desta – na sua totalidade – não significa tácita concordância com teorias, discursos e práticas do Poder. Por vezes, nas profundezas da mente de cada um, impera o medo de falar algo que parece que mais ninguém enxerga, de parecer que se está falando besteira, além do medo de represálias ou censura. Quando o instinto de sobrevivência fala mais alto e faz calar a boca, a vontade coletiva parece a todos acobertar, como se houvesse um acordo tácito, silencioso e anônimo, culturalmente vinculador. Nesse momento, o silêncio que impera, mas não é de concordância: é de eloquente discordância, em latência maturação, à espera do momento em que o brado de libertação e de livre expressão possa extravasar o que estava sufocado.
De repente, como tempestade de verão que chega com forte ventania e tudo arrasa, do nada entra em erupção a força incontrolável que faz instalar um movimento sem dono, sem autor intelectual identificado, sem coloração partidária e projeto político e, por isso mesmo, indomável e incorruptível. Esse é o conjunto das anonimadas intenções. São vontades e desejos eminentemente anônimos, não na divulgação, eventualmente autoral e superficial. São anônimas intenções em camada mais substancial, importante e profunda, na estruturação do caráter da proposta, da intelectualização das vocações, da empírica constatação de algo que o consciente coletivo construiu, ao unir os desígnios individuais.
Quando se chega a esse ponto, o Poder sofre, sente-se deslegitimado, desprestigiado e dissociado dessa realidade que brota do silêncio individualizado e do barulho coletivizado. Não é culpa só dos poderosos de plantão, dos donos do Poder, do poder do Poder. Não é fato ligado ao margeamento dos limites regrados, dos padrões conhecidos e das subjetividades eventualmente rompantes e toleradas. É apenas a constatação de que a tempestade veio para arrasar com certos elementos que estavam se cristalizando como dogmas e, assim, embotando a alegria nas almas das pessoas livres. Essa é a tônica de muitos movimentos. A liberdade gritando por si. Um valor que se basta.
Isso tudo é tão fundamental e natural que, em qualquer circunstância, não tem nome de guerra, pedigree autoral ou a necessidade de qualquer palavra que lhe dê alguma definição. O ideal do controle do poder do Poder é esse. A confiança cega, o senso crítico dominado, a divisão social, a colocação dos livres nos extremos polarizados, de sorte a deixar no meio uma grande massa que, não querendo ser tachada de polarizada, perca a sua identidade e mergulha no anonimato. Ainda há os que, mesmo não concordando com o óbvio e o que se vê, não se manifestam, apenas porque não poderiam concordar com “os outros”, contra “os nossos”, sem perceber que as discordâncias e incoerências que estão alimentando estão nas próprias consciências.
Anonimamente, individualmente, não raro não se conhece, não se identifica, não respira, não se move, não critica, não concorda e não discorda. Não vive e não vivifica o seu existir. Apenas está ali, existindo passivamente, como contribuinte pagando impostos, como consumidor consumindo o que mais lhe seduz, como quem aprende o que querem que aprenda e repetindo o que lhe fornecem para a padronização do seu pensar e agir – para bem cumprir o seu papel nessa grande estrutura.
Alguns dirão que o capitalismo faz isso. Os regimes centralizados e de economia estatizada, também fazem. Dirão outros, que a Democracia tem disso – mas os regimes autocráticos também funcionam fazendo isso. Cada um ao seu modo, cada um ao seu tempo, cada um com os seus gestos, modelos centralizados evidentes ou não, obram em prol do poder pelo Poder e, assim sendo, nos colocam apenas como aderentes e agregados. Quando a deslegitimação se evidencia, quando o grupo se conecta com um momento específico onde transborda o que já vazava de resistência em cada um, o poder resiste, buscando se auto proteger. Nesse momento é que o poder mais se evidencia, porque alvitra se proteger e estar muito mais além e distanciado da sua raiz motivadora. Noutras palavras, o que se via como alguma dissociação mais se torna evidente, mais se torna óbvio, mais se torna afiado e felino e lesivo.
Movimentos assim estiveram presentes – com variações e guardadas as proporções e comparações – na origem da independência dos EUA diante do Reino Unido, nos processos de independência das colônias portuguesas, espanholas, holandesas, britânicas e francesas, dentre outras. Estiveram presentes, ainda, nos movimentos que ensejaram as revoluções cubana, russa e chinesa. Também a Revolução Francesa (tão bem estudada e exposta por Alexis de Tocqueville), com a instalação da gestão intervencionista popular contra as estruturas do Antigo Regime, bem demonstra como estava desafinada a pomposa melodia que a Corte tocava ante os ouvidos mais sensíveis do povo faminto.”
Devisate em seu artigo descreve brilhantemente os sentimentos de um povo que não se manifesta, não porque concorda com ações de governo. Suas graves consequências que nunca foram novidades na história universal. O artigo “Anonimadas intenções” transcende a mera análise e comentário é, praticamente, uma advertência a qualquer governo desatento aos sentimentos de seus povos. Em alguns países a situação é gravíssima e os governos precisam ficar atentos. As manifestações de apoio de ‘meia dúzia de gatos pingados’ ou resultado de pesquisas de publicos escolhidos transmitem o sentimento da maioria. Ninguém gostaria da repetição de alguns eventos trágicos do passado.
“Ditadores montam em tigres dos quais eles não têm coragem de desmontar. E os tigres estão ficando com fome.” Winston Churchill, ex-primeiro-ministro do Reino Unido
O poder do silêncio.
O silêncio de um povo não significa a aprovação dos atos do poder.
