Corria o mês Shravam – no ocidente, julho/agosto. Aproximava-se o dia do festival Nagapauchami, em que se comemora a data em que o deus guerreiro Krishna (hare, Krishna!) conquistou a cobra naja Kalyia, venerada na família de Krishnyia e Avashta, as moças referidas neste relato.
As negociações tinham sido muito bem procedidas pelo casamenteiro. O dote da noiva Krishnyia tinha sido estipulado em quatrocentas peças de ouro. Isto iria assegurar ao noivo, também de casta tradicional e adorador de Ganesha, o Deus Elefante, a possibilidade de estabelecer seu próprio negócio. Ganesha, sabe-se, tem como guardião a cobra-rei, que se mantém ao seu lado com seu capelo inflado, as presas mortais à mostra.
O yogi, pai de Krishnyia e Avashta, iria tocar flauta nas festividades religiosas em homenagem à divindade serpente.
Na cultura Vishnava, à qual se prendiam as famílias dos noivos, a cobra-rei surgiu como Balarama, que depois se expandiu como Ananta-Sasha. De natureza divina, Ananta-Sasha não é um ser materializado, porém, de sua radiação, vieram as serpentes. Estas, são protetoras não só das nascentes e das águas subterrâneas, mas também das jóias, do ouro, dos metais e pedras preciosos, do dinheiro. Matar uma cobra, sobretudo uma naja, na cultura Vishnava, faz com que a pessoa se torne estéril: fica-lhe negado o direito de procriar, tornando-se seu nome impronunciável.
Pela tradição, os noivos só se conhecem depois do casamento. Por essa razão, a bela Krishnyia, nem ela, nem sua irmã Avashta, podiam saber que eu, autor deste relato, era o prometido de Krishnyia, coisa que eu próprio ignorava.
Embora consciente de meu compromisso, e disposto a cumpri-lo, ao ver na procissão aquelas duas moças, senti-me fortemente atraído pela que estava de sari vermelho-sangue, tendo ao lado uma outra que vestia amarelo-ouro. Fiquei empolgado quando vi que as duas me enviavam olhares brejeiros, cochichando entre si.
A multidão se avolumava, permitindo aproximar-me das jovens até ficar bem pertinho e à frente delas. O empurra-empurra da multidão que buscava acercar-se do palanque onde estavam os músicos e do altar onde os sacerdotes cumpririam os rituais de louvor a Nagaraja, o deus-serpente, fez com que a moça de vermelho, instintivamente, se apoiasse em minhas costas. Aquele toque me eletrizou. Cheguei a lamentar minha condição de noivo, que me impedia de melhor aproveitar aquele contato físico.
A música da flauta, o repicar dos pandeiros e tamborins, os acordes das cítaras e alaúdes, o penetrante cheiro do incenso nos queimadores, tudo criava uma excitação coletiva que se tornava crescentemente palpável.
Quis dirigir palavra à moça que se apoiava em mim, mas isso seria um grande desrespeito. A mão dela, entretanto, continuava fazendo aquela pressão suave e tentadora em minhas costas.
As famílias, minha e de minha noiva, eram de casta superior. Nossas origens remontavam ao tempo da Era de Ouro, com o império fundado no século quatro dos cristãos por Sri-Gupta. Foi quando a Índia obteve extraordinárias conquistas com os feitos do sucessor Chandragupta, que se tornaria marajadiraja, senhor e imperador. É nesse tempo que se deu a escrita do sânscrito, chamada Gupta-Brahmi, o que permitiu eternizar o Mahabárata, um dos maiores poemas épicos do mundo. Foi quando se inventou o jogo de xadrez, inspirado nos movimentos dos exércitos gupta, com suas torres de ataque, seus cavalos e elefantes de guerra – estes, no jogo dos dias correntes, representados pelas peças denominadas bispos.
ei que não podia, sei que não devia, mas, mesmo assim, dirigi-me à moça, esperando ouvir o chilrear de sua voz. Apesar do tabu, contava recebê-la como uma pequena gentileza, em retribuição ao apoio que vinha prestando às duas, aliviando-as dos empurrões dados pela multidão cada vez mais compacta.
De repente, abre-se um espaço, com as pessoas correndo para todos os lados em desespero. Uma enorme cobra-rei, não se sabe de onde vinda, soltara-se. Com seu capelo expandido, silvando furiosamente, a naja oscilava lentamente, o bote mortal já armado.
O pânico era geral. Fui atirado para fora do alcance das moças. O medo da cobra, que não podia nem mesmo ser enfrentada, quanto mais abatida, fez com que a menina do sári vermelho acabasse sendo lançada no raio de ataque da naja. A picada veio fulminante. A cobra cravou suas presas no rosto da jovem. Como se fossem seringas hipodérmicas, inocularam no corpo da menina uma dose de peçonha suficiente para matar um cavalo. Após a picada, a naja retraiu o corpo furiosa, silvando, a língua bífide agitando-se no ar.
No pandemônio que se seguiu, o socorro não pôde ser prestado a tempo. Quando chegou, a vítima já estava morta.
Só quando fui ao funeral é que pude saber que aquela pequena gentileza que recebera ao sentir a pressão daquela mão em minhas costas, sem que eu tivesse a chance de ouvir a voz da menina no sari vermelho-sangue, no festival do deus Nagaraja, o Rei Serpente, seria o único e derradeiro carinho que eu viria a receber de Krishnyia, aquela que me fora prometida em casamento, mas que o deus Cobra-Rei, sem se importar com os esforços do casamenteiro, já havia reservado para ele.