Nas urnas, na cabine de votação, sempre se pretendeu que ocorresse algo parecido com essa ética, no momento do encontro mais íntimo da pessoa com a verdade do seu destino como cidadão.
Hoje, se valoriza mais as versões do que os fatos em si e, deste modo, se extingue a alta simbologia do encontro da pessoa com a sua verdade – algo construído por séculos, muito além da ética dos confessionários.
A questão é que parece que hoje não se valoriza a verdade, por si mesma.
A Psicopolítica revela técnica de dominação sem a opressão clássica, que ocorria pela força. Hoje, a manipulação dos elementos nos leva à submissão voluntária, tal qual teia de aranha que nos prende cada vez mais, conforme tentamos dela fugir: a armadilha perfeita.
Essencialmente, “estamos a fim de saber a verdadeira verdade”, como na canção da banda Cidade Negra. Não queremos ilusões e distrações. Reclamamos das mentiras sinceras e dizemos querer a essência, não a aparência. Todavia, esse querer não corresponde sempre ao nosso agir.
Precisamos de placas de direção, não de distração, embora sejamos atraídos por ilusões e promessas vazias. A verdade é uma forma de vida, enquanto o oposto nos consome tempo e emoção.
Até que ponto não comprometemos a nossa individualidade e humanidade com as nossas ilusões e crenças na mentira alheia?
Tudo por uma curtida! Estamos vivendo pelo “sim” e “não” das curtidas e menos no “porquê” delas. Sem perceber, temos tido pequena ansiedade por essa “aceitação”, como se nossa realidade adulta se adulasse pela aceitação no bando, simbolizada por emojis e símbolos afins.
A nossa capacidade de criticar, resistir e lutar foi trocada por isso ou somos mesmo ovelhas pastoreadas, levadas a fazer exatamente o que desejam os verdadeiros donos do poder – que não são exatamente os mandatários e governantes de plantão, mas os que estão nas sombras e com a chave dos cofres.
Quando há um acontecimento, há um fato. Mas, quando falamos do fato, dele damos versões – o que não é o fato em si. Cada vez que alimentamos qualquer torta palavra sobre um fato verídico, noticiamos falsamente a verdade… Por que agimos assim?
Toda nudez será castigada é o nome da peça, escrita por Nelson Rodrigues, em 1.965, que girava em torno desse universo, na medida em que o que se passava em cena não era a verdade, apenas o ponto de vista de personagem.
Qual o impacto desse contexto, quando isso se dá em amplitude nacional, em política, eleição e planos de futuro? Não refletimos sobre isso.
Decerto, o mundo passa por momento de autocrítica, ainda que sem consciência plena. Em parte, porque as sociedades querem mudanças, mas não querem mudar, ao mesmo tempo em que menos homenageamos valores que foram fundamentais na construção da sociedade grega e que tanto influenciaram a humanidade e as nossas sociedades.
Os valores duradouros cedem ante interesses momentâneos.
A ética e a moral social sucumbem à uma certa lei da vantagem. Nunca soou tão cotidiano o pensamento de que “os fins justificam os meios”. A busca de resultado pessoal, de vantagem a qualquer custo e de aparecer bem na foto virou lugar comum e soa mais importante do que respeitar a ordem na fila, chegar ao final com honra e demonstração de bom caráter. Sinal dos tempos ou tempo de sinal amarelo ou vermelho?
As redes sociais e os aplicativos de mensagens nos aparelhos celulares são modernidades que romperam os canais tradicionais de veiculação dos fatos e notícias. Se antes os jornais funcionavam como filtro, pela averiguação das fontes jornalísticas e da análise dos fatos primários, hoje muito se divulga o que se “ouvir dizer” – como se fosse o fato.
Versão requentada não é prato quente.
Somos menos cidadãos quando agimos como meros consumidores de notícias sobre fatos e, principalmente, sobre divulgação de suas meras versões.
Pior: não somos consumidores atentos e que reclamariam de condutas abusivas dos vendedores e fornecedores e, principalmente, da propaganda enganosa ou da venda casada!
Na política, somos consumidores passivos, satisfeitos por consumir, apenas – não importa o quê. Consumimos, absorvemos e reproduzimos o que quer que seja, sem nos importar muito com a origem do que nos é entregue. Aceitamos até a propaganda ilusória, manipuladora ou enganosa, como algo natural ou parte do jogo político…
Não nos preocupamos com a “venda casada”, na política (algo como votar e consumir um político e levar outro junto – ou grupo de apoiadores, interesses indesejáveis ou seja o que for, esteja ou não declarado).
Há um desvio de finalidade, algo desfocado, na motivação e na conduta finalística. Esse contexto e, também, a exibição do voto dado ou por se dar – que deveria ser secreto – de algum modo não dialoga com o título daquela peça de Nelson Rodrigues, já que não se pune à exposição e nudez daquilo que, nas urnas, por vocação, se faria em segredo.
Estamos sucumbindo, conscientemente ou não, à uma sociedade do espetáculo.
Ora somos os que se exibem, ora os expectadores.
A coisa flui de tal modo que a nossa vontade própria acaba por ser atingida.
As pesquisas de opinião nos induzem a pensar de tal forma que passamos a considerar natural o “voto útil” no 1º Turno, em vez de votar com convicção no candidato que realmente nos interessa.
Sofremos influência pré-reflexiva e reagimos a isso, exatamente como planejado.
Somos reagentes, em vez de agentes de transformação.
Além disso, na internet e nos aplicativos, a “curtida” é um tipo de “amém” digital. Os confessionários e o “enter” do aparelho, tem algo de conecção com a entrega da sua verdade.
Ocorre que a internet não é confessionário, pois nada lá é secreto e seguro. Tudo é arquivado, representado, considerado e monitorado.
Cada vez mais adubamos a planta que nos entorpece os sentidos e alimentamos a sanguessuga que consome a nossa energia vital.