A História nos ensina. Os nossos antepassados nos ensinam. Os mestres nos ensinam. Muitos nos ensinam. Por qual motivo tantas vezes renegamos os sábios e amaldiçoamos os seus ensinamentos?
Parte da humanidade parece balançar entre a fantasia e a realidade. De tempos em tempos, fica mais evidenciado que alguns se deixam levar pelo sedutor som da corneta, que conduz a boiada pelos campos e, dali, ao matadouro. Vão rindo, comemorando a jornada, se distraindo com as novidades do caminho e crédulos de que todos agem por bom propósito. Outros, estoicos, não se deixam levar por crenças ou paixões e seguem, firmes nos seus conceitos e seguros da sua livre consciência. De todos há, em todos os lugares.
Em meio a isso, quanto mais o presente parece estar seco como o deserto, mais os Clássicos são enaltecidos. Nesse ponto, Sócrates parece vir em socorro das nossas dúvidas e inconsistências.
Registra a História que os Tiranos necessitavam de recursos para satisfazer as suas despesas e, então, decidiram se apropriar de bens privados, ocasião em que decidiram matar o Leão de Salamina e tomar o seu patrimônio. Uma comissão foi formada para esse fim e Sócrates a integrou. Contudo, este se recusou a cumprir a ordem e, consta, foi para a sua casa.
Naquela época, Sócrates também foi proibido de falar aos jovens.
Como consequência, perguntou quem seriam estes e lhe disseram que seriam os que tivessem menos de trinta anos.
Então, Sócrates lhes questionou se não poderia indagar a um desses jovens onde alguém residiria ou qual seria o preço de determinado produto.
Receber a imposição do silêncio é algo doloroso. À alma, dói tanto quanto ter o corpo a língua arrancada. Como se vê, o silêncio é algo para o qual o ser humano não foi feito. Está na nossa natureza falar, explicar, retorquir, contradizer, argumentar.
A palavra falada está na raiz das acusações, das defesas e dos julgamentos, tanto quanto nas entrevistas, nas palestras, nas conferências, nas passeatas, nas orações e nos cultos. Não se trata só do silêncio das palavras, escritas ou faladas. Não abordamos apenas o silêncio singular. Não falamos somente do som das vozes caladas ou, temerosas, não gritadas, mas sussurradas, apenas. O pior silêncio é o que atinge o livre pensar.
Os últimos 200 anos criaram um mundo e hábitos totalmente diferentes dos que a humanidade vivenciou antes. Do papel higiênico aos antibióticos, da luz elétrica ao Raio X, da água sanitária ao carros e aviões, dos computadores aos trens… E, convenhamos, nada disso decorreu do silêncio ou do controle das ações e pensamentos criativos. Foram tantas as mudanças que até surpreende que o ser humano ainda seja classificado como Homo sapiens, não tendo se transformado em Homo modernus. Talvez isso não tenha ocorrido porque as mudanças não alteraram o que nos faz humanos.
Ainda possuímos as mesmas virtudes e os mesmos defeitos. Tanto isso é verdade que continuam bem atuais os chamados Sete Pecados Capitais (soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça).
Dois deles mais dizem respeito à própria pessoa e os ignoraremos, aqui. Os demais envolvem intensamente duas ou mais pessoas e é onde o ser humano mais pode causar mal. É na soberba, na avareza, na luxúria, na inveja e na ira que o pior do ser humano pode se revelar, exigindo que as pessoas reajam, se impondo, se manifestando e resistindo, sob pena de sucumbir e se humilhar e se desumanizar. Nessa balança, o silêncio, a omissão e a covardia afetam a si e, também, a coletividade.
Há, portanto, um senso ético, comum, na resistência, na luta por melhoria, pelos valores universais, pela moral social, pela ética do grupo, pelo Direito posto. Esse silêncio, ou não, está ali. Pode ser silêncio eloquente ou estratégico, mas não pode ser silêncio de ausência.
O silêncio clama ser substituído pela voz dos excluídos, dos famintos, dos perseguidos, dos injustiçados e dos que lutam por melhorias. Por isso, o pior silêncio é o imposto aos pensamentos, à mente produtiva, aos indignados, aos questionadores, aos pensadores, aos intelectuais, aos artistas, aos escritores, aos críticos e aos iluminados seres que tanto obraram, ao longo do tempo, na construção do mundo e da civilização.
Em É proibido proibir, Caetano Veloso nos brindou com música, apresentada no Festival Internacional da Canção, de 1968.
Outras vozes, em outros momentos, vieram contra o silêncio, contra muros, contra armas, contra censura, contra limites impostos ao ilimitado senso de liberdade da alma humana. O Muro de Berlin caiu, por vozes que não silenciaram. A Queda da Bastilha e a Revolução Francesa não ocorreram por comodismo diante do opressor Antigo Regime. As lutas contra a censura e os abusos das ditaduras, como as Hitler, Stálin, Mao, Mussolini e Salazar, não vieram do silêncio dos inocentes.
Sócrates foi processado e julgado, bem o sabemos. Detalhe nem sempre percebido é que era julgado por impiedade.
Questionou Eutífron sobre o conceito de piedade e este não o sabia! Se nem todos sabiam o que era piedade, como se o julgavam por impiedade?
A impiedade, ali, estava no contexto de fazer os jovens pensarem por si e no método socrático, de desmascarar a ignorância alheia.
Na acusação, constava agir Sócrates investigando as coisas do céu e da terra e de valorizar a razão – e de ensinar isso.
Assim, a cidade – que operava sob o manto da liberdade política – condenou um cidadão por suas ideias.
Não foi o primeiro, não foi o único, mas deixou-nos o legado importante, de que o Estado tem razões próprias, de se autovalorizar, se autoproteger e se autoapiedar, como criatura se voltando contra o criador: a sociedade ou parcela dessa, quando filosoficamente questiona as suas razões de agir. O mesmo roteiro de fundo, vimos nos filmes Gladiador e Ben Hur e lemos no livro O último dia de um condenado, de Victor Hugo.
O mesmo contexto ainda temos em vários cenários: na Justiça essencial, quando se impõe ao frio texto da lei; na conduta ética, que ultrapassa os limites do carimbo do burocrata; na pureza e gentileza que colocam uma flor no cano da arma; no bem contra o mal, no bom contra o mau, no certo contra o errado e, também, na tumba vazia do soldado desconhecido, cuja lápide homenageia quem teve vida corajosa e não lutou em vão.