Nem sequer estava chovendo. O céu azul. O mar, calmo, um grande espelho. Nenhuma nuvem. Nada que pudesse servir de presságio. Até a hora: não tinha nada a ver com horário de catástrofe. Catástrofe que se preza acontece tarde da noite. Melhor ainda: de madrugada. Pega todo mundo na cama, desprevenido. Mas o desastre que veio, veio sem avisar. Sem sinal. Fora de hora. Diabo de desastre mais sem propósito! Mas veio. Veio no fim da manhã. Todo mundo trabalhando. Estudantes, nas escolas. Dormiam aqueles que trabalham à noite. Que trocam a noite pelo dia. A noite é feita para dormir. Ou para fazer macumba. O dia, para trabalhar. De repente, a terra pôs-se a tremer. Sem aviso prévio. Um barulho que vinha das profundezas. Um estrondo que não tinha tamanho. Que ninguém sabe donde vinha. Paredes chacoalhavam. Depois, muitas desabaram. No chão, fendas. Fendas enormes. Pareciam imensas bocas cheias de dentes. Bocas que só se abriam, sem fechar. Bocas que não mastigavam. Que engoliam carros, árvores, postes, gente, casas. Sem mastigar. Nunca imaginei que ia passar por aquilo tudo. Estava de passagem em Porto Príncipe. Do Haiti, queria ver o vodu. Magia negra. Zumbis. Sabia que o povo era pobre. Só não sabia que era tão pobre. Chocou ver tanta miséria. Procurei saber dos terreiros. Será que iria ver o ritual de magia negra? “Vodu, meu amigo”, falou o haitiano. “Esse negócio de zumbi, é isso que você quer ver?” Ele tinha um táxi. Um velho Chevrolet, aos cacos. Mas andava. Como que por milagre. Fazendo fumaça. Fumaça preta, saindo em novelos do cano de descarga. Mas andava. Conheci-o logo no meu primeiro dia no Haiti. Fim de tarde. Papo de boteco. No bar, fiz valer meu francês pé-quebrado. Deu pro gasto. O motorista era magro. Tão magro que, pensei, esse aí pega sombra embaixo de fio elétrico. Vestia uma calça de cor indefinida. Sapatos bicolores. Camisa puída, roxa. Paletó mais puído ainda, verde musgo. Para completar, chapéu de copa alta, preto, uma pena preta espetada. Parecia pena de urubu. – “Ça va, mon cher!”. Ele ia dar um jeito de me levar pro vodu. Mas não deu naquela noite. O que deu foi um porre homérico de absinto. Começou no boteco. Continuou em boates. Pretas peladas. Brancas peladas, velhas. Cheias de pelancas. Mais absinto. Mais strippers. Até umas duas asiáticas, as partes peladinhas. Quase sem peitos. Sem bundas. Depois, apaguei. Acordei na cama do hotel. O telefone gritava. – “Bon jour!”. Era o motorista. Dizia que tinha acertado com um terreiro de vodu. Combinamos encontrar no fim da tarde. Mesmo boteco. Sem absinto, exigi. Ele riu. E nunca mais o vi. Ao desligar, a primeira sacudidela. Não foi tão forte, mas deu pra sentir. Gritos. No corredor. Vindos dos apartamentos. De toda parte. Da rua. O chão tremelicava. Barulho forte, vindo não se sabe de onde. Desci correndo. A escada sambava, doida. Saí à rua. Novos estremeções. Um uivo grosso, saído do fundo da terra. Gente correndo como baratas tontas. O que fazer? Nada. Só se segurar. Cair ao chão virou rotina. Segurar onde der, quando der. Por pouco aquela boca enorme que se abrira não me engoliu. Que é que eu tinha que vir fuçar vodu no Haiti quando tem tanta macumba forte e da boa na Bahia? Em Codó? No Rio de Janeiro? O mundo estava doido e descontrolado. Minutos viravam horas. Eternidade. Paredes desabando, matando gente. Gritos. Cadáveres. Carros quebrados. Ruínas por toda parte. Que é que eu tinha de vir fuçar o tal do vodu no Haiti quando tem tanta macumba forte e da boa na minha terra? Vou voltar para o Brasil. Não sei como, não sei de que jeito, no meio dessa bagunça geral. Vou voltar pro Brasil. Pode não ter zumbi, mas tem muita macumba forte e da boa. Na Bahia. Em Minas. No Rio. Se der, volto correndo pro Brasil. Não quero mais saber desse tal de vodu.