Tempos de isolamento social. Lockdown. Máscara cirúrgica, face shield, aquela placa de plástico transparente na frente do rosto com uma tira elástica cujo uso traz dor de cabeça, luvas, blusas de manga comprida para sair à rua… O quê?!? Sair à rua??? Nem pensar!!!
Aqueles equipamentos que se incorporaram ao vestuário dos tempos de praia, de sol, de idas ao escritório, de viagens de metrô, de baladas com a galera, de encontros com os paqueras; a face shield, a máscara, as luvas, tudo que lembra a pandemia, é detestável. Dava vontade de chutar o balde, de enfrentar os riscos de contaminação e meter o pé na porta do apartamento, pegar o elevador, ganhar a rua. O vírus? Ora, o vírus… O vírus só pega nos outros…
Rapidamente mudava de ideia e se dizia: não dá. Não dá para chutar o balde. Não podia pensar apenas em si mesma. Estava trancada com pessoas queridas, a quem amava ternamente. Eram pessoas que estavam no grupo de mais alta vulnerabilidade diante da Covid 19. Caso cedesse ao impulso de pegar a chave do carro, saindo para um rolê, corria o risco de voltar para o apartamento trazendo de fora o inimigo invisível.
O computador ficara na cidade onde morava antes. Ligações virtuais, só pelo celular. Sua habilidade no uso do aparelhinho lhe garantia contatos com pessoas fisicamente distantes, mas era cansativa a leitura de textos mais longos. Até para escrever era mais complicado: pelo teclado, tudo fluía melhor. E, em função do isolamento, comprar um novo computador, além de caro, podia trazer problemas na instalação. Enfim, restava agradecer a boa sorte que tinha de dispor de um celular moderno, cheio de recursos.
Para passar o tempo, contava com a televisão, com os noticiários e filmes no streaming, só que não dava para varar o dia olhando o televisor.
Pouco antes da pandemia, fizera uma viagem. Há quanto tempo? perguntava-se. As horas passam tão arrastadas que aquela última viagem parecia ter sido feita antes da era das grandes navegações.
Tinha terminado um namoro de mais de ano quando saíra para aquele último passeio. Lembrava-se vagamente de ter chorado um pouquinho ao fim do relacionamento. A bem da verdade, não foi só um pouquinho. O tempo, contudo, é uma ótima borracha: começa deixando as lembranças com uma cor desbotada, até que as apaga de vez.
Ela não bebia, não fumava, não usava drogas. De seus amigos bebedores, do ex-namorado chegado a uma capirinha, ouvira que a cura mais eficiente para uma ressaca braba é um novo pileque. De porres, ela não entendia. De namoros múltiplos, também não. Como diziam suas amigas, ela era “certinha”. Mas logo aprenderia que o coração sara mais depressa da dor de um término de relação quando aparece um novo alguém no cenário afetivo. Tais considerações logo lhe ocorreram quando apareceu um carinha interessante naquele lugar a beira-mar. Sua auto-estima ficara um tanto abalada com o término do último namoro, mas não ao ponto de não confiar no seu poder de sedução.
– “Olha aquele gatinho ali! Ele tá de olho em você”, dissera a amiga. – “Mas você não vai querer nada com ele, né? Ainda tá com dor de corno pensando no fulano que te deixou…”
Fez a aposta. Ia dar mole para o gato. Deu. O gato virou rato: caiu na ratoeira.
Tudo parecia correr às mil maravilhas. O novo pileque rapidamente curou a ressaca braba. Mas a viagem era curta e ela logo voltou para casa. Pior: quando se despediram achando que o namoro era para valer, chegou a pandemia. Todo contato com o gato que virou rato passou a ser virtual. Foi, foi, foi, até que não foi mais.
Ficou o vácuo afetivo. Preenchê-lo sem estar vivendo a vida real é tarefa irrealizável. Encetar um namoro virtual não lhe apetecia. Mente-se descaradamente pelas redes sociais.
Resta resignar-se. Manter-se confinada. Contatos presenciais, só com os familiares idosos. Mesmo com o mais eficiente EPI – equipamento de proteção individual – não dá para se arriscar à contaminação. Não só pela saúde própria, como pela falta de leitos de UTI e, sobretudo, pelo medo de se tornar vetor do vírus, fazendo adoecer seus parentes, ou até mesmo levando algum deles a óbito.
Com não mais do que vinte anos, na véspera de seu aniversário descobriria que a pandemia fizera dela e de muitas outras na mesma situação, uma jovem senhora de idade
Rui Guilherme
Juiz de Direito e Escritor.