“A fúria das balas não distingue: pega o que encontra. O grande brinquedo dos nossos tempos modernos consiste em destruir, destruir, destruir” (Monteiro Lobato).
Esta frase foi extraída de uma conversa entre o pessoal do Sítio do Picapau Amarelo e Hércules, numa onírica viagem à Grécia antiga. Emília e Pedrinho falavam a Hércules sobre a pólvora, palavra nunca antes ouvida pelo ser mitológico. Visconde de Sabugosa, didático, explicou: “— A pólvora foi a invenção que deu cabo dos heróis. Nos tempos modernos não pode haver heróis como estes cá da Grécia justamente porque a pólvora não deixa. A força física pouco adianta. Com um tiro até um menino derruba um gigante”.
Tragédias causadas pelo uso indevido de armas de fogo acontecem com bastante frequência e vez ou outra os noticiários trazem matérias que nos causam os mais variados sentimentos, mexendo com todos nós, mesmo quando os fatos acontecem lá fora, bem distantes de nossa realidade. Refiro-me, e só para ficar neste exemplo, aqueles casos em que jovens (crianças e ou adolescentes) norte americanos apropriam-se das armas dos pais (ir)responsáveis, dirigem-se a uma escola qualquer e matam professores e alunos indistintamente.
Episódios semelhantes estão acontecendo no Brasil, infelizmente, como acontecido no mês de novembro próximo passado (consultar no Google: “Atirador tem 16 anos e usou arma do pai policial em ataque no ES”).
E aí? Como fica? Se fosse um filho nosso a vítima do ataque? É possível ficar inerte diante de cenas aterrorizantes de derramamento de sangue, que geram morte e causam infelicidade quando vimos aqueles que deveriam dar o exemplo ultrapassarem o limite do razoável, expondo-se nas mídias e redes sociais com suas armas de grosso calibre, pregando um discurso vazio de ódio e liberalidade (de armamento para todos) em prol de uma pseudo segurança privada por serem incapazes de olhar para a pública por incompetência ou desconhecimento, preferindo atirar em policiais federais ou correr pelas ruas de São Paulo em plena luz do dia empunhando u’a arma atrás de determinado militante adversário?
Os episódios envolvendo Roberto Jefferson e Carla Zambeli aconteceram em outubro/2022, um mês depois, motivado pela “cultura da violência” que impera em nossa sociedade o jovem catarinense decidiu que também poderia atirar em alvos vivos. Lamentável, para ficar só nisso.
Em boa hora dá-se início ao processo de reestruturação da política de controle de armas no Brasil (Decreto nº 11.366/2023), mesmo porque existe levantamento estatístico que demonstra que grande parte das armas apreendidas com membros de grupos criminosos organizados tiveram origem legal (consultar no Google: “Exclusivo: armas compradas legalmente vão parar nas mãos de criminosos, aponta levantamento”). Ou seja, armas adquiridas legalmente, motivo pelo qual a política de armamento que tivemos nos últimos quatro anos resultou em um sério problema político-criminal que urge ser enfrentado em favor da vida.
A norma não vai resolver logo todos os problemas. Acredito que no fundo precisamos muito mais é de uma dose cavalar de humanidade em nossos corações, tolerância e compreensão para com os outros e não apenas para quem é próximo de nós, o que é impossível fazer através lei ou regulamento. Mas, algo precisa ser feito realmente e o decreto acima referido é um começo.
Reduz-se o acesso às armas e munições e suspende-se o registro de novas armas de uso restrito de CACs – Caçadores, Atiradores e Colecionadores. Também se suspende as autorizações de novos clubes de tiro até a edição de nova regulamentação.
Penso que temos de avançar e começar e elaborar uma política em que colecionador não pode atirar com armas de coleção (são peças de museu); atirador tem de deixar suas armas nos clubes de tiro ao invés de saírem com os instrumentos de lá; e caçador deve ter permissão e controle do IBAMA ou órgão ambiental equivalente para matar por esporte ou subsistência.
Vejo e conheço um montão de gente que anda armada a pretexto de se proteger, mas se protegeriam melhor se não se expusessem publicamente como fazem. Tem gente andando armada por medo da violência urbana. Neste caso melhor seria cobrar das autoridades públicas maior atenção à segurança ao invés de agir como no velho oeste americano com um revólver no coldre exposto ou uma pistola ao alcance da mão. Tem pessoas que se consideram ameaçadas e contraditoriamente se expõe em logradouros públicos com uma arma pronta para ser sacada e utilizada ao menor sinal de risco, invariavelmente não comprovado ou justificado a contento. E quando, então, se mistura bebida alcoólica nestas condições? A chance de lesionar alguém ou mesmo matar é imensa, haja vista o fator álcool e arma serem inconciliáveis e letais.
Aliás, bom refletir naquelas situações de autoridades que detém prerrogativa de andar armado estarem “se divertindo” em bares ou ambientes similares. Agentes da segurança pública não podem se divertir nesses aglomerados armados (ou deixam a arma no balcão de entrada ou não devem entrar), porque a segurança destes estabelecimentos é feita pelos próprios proprietários, sendo esses fiscalizados pelo Poder Público. Mas a recalcitrância impera e os exemplos são inúmeros de casos que poderiam ser evitados com essas simples providências e acabam mal legal (consultar no Google: “Aglomeração, bebida alcoólica e armas: Fantástico discute a entrada de policiais armados em baladas pelo Brasil”).
Está na hora de a polícia e o judiciário começarem a debater isso, porque tal qual álcool e direção de veículo automotor, em tese, poder ser caso de dolo eventual, álcool e arma de fogo também, pois quem está armado e ingere bebida alcoólica assume o risco de produzir um resultado lesivo e/ou fatal, ou não? O Judiciário não pode compactuar com essas situações, não pode passar a mão na cabeça dos maus policiais que lesionarem ou matarem nessas condições, pois do contrário estaremos dando carta branca às ações letais indevidas e que poderiam ser evitadas com um pouco de prudência.
De toda sorte, nos próximos quatro anos deve haver uma maior racionalidade e enfrentamento dos problemas com base técnica. Para combater a criminalidade, precisamos mais do que palavras vazias ou discursos moralistas de nós contra eles. Precisamos, isso sim, de inteligência, de informação estratégica, comprometimento e medidas efetivas de respeito ao próximo.