Das várias missões que me foram confiadas na carreira de promotor de justiça, uma que calou profundamente minha alma e amargou minha boca foi a apuração do naufrágio do Barco Cidade de Óbidos I, que ceifou a vida de várias pessoas tragicamente. A história triste que vou contar foi extraído do relatório final das investigações que realizei após exaustivas diligências “in loco” no Vale do Jari, na divisa entre os Estado do Pará e Amapá. Confesso que chorei várias noites insone sozinho porque não era pra ter acontecido. Era perfeitamente evitável.
No dia 26 de janeiro de 2.002 o comboio composto pelo rebocador Florenzano Neto empurrando a Balsa Gonçalves II havia zarpado do porto de Vitória Jari e navegava no Rio Jari com destino a Belém do Pará carregado de mercadorias e veículos leves e pesados.
Em sentido oposto seguia o barco CIDADE DE ÓBIDOS I, que havia zarpado no dia anterior do porto de Santana com destino a Laranjal do Jari, em rota normal. Trazia a bordo uma comitiva de políticos, autoridades e passageiros, bem como cargas de pequeno porte.
A lista oficial de passageiros do CIDADE DE ÓBIDOS contava 114 pessoas mas não condizia com a realidade porque relacionou pessoas que não estavam a bordo e havia notícias de passageiros embarcados e não listados.
A revista Veja de 06.03.02 menciona “mais de 184 passageiros”, enquanto que o Jornal Vale do Jari nº 61, da 2a quinzena de fevereiro/02 comenta que “deixou o porto de Santana na noite do dia 25 com 187 passageiros a bordo conforme informações de sobreviventes”. Considerando as informações de que a capacidade era para 300 passageiros, não havia excesso de pessoas.
Por volta 5:20 horas do dia 26.01.02 nas proximidades da praia denominada Saudade na localidade de Ponta Alegre (ou Vista Alegre), em Jarilândia, o marinheiro auxiliar fluvial Josuel dos Santos Lima manobrava o comboio e tocou o alarme de parar máquinas para troca de um tubo injetor que havia estourado no sistema do gerador, acordando o comandante contra-mestre Raimundo José de Souza Neto.
O referido comandante, estando próximo da margem esquerda e tendo visualizado um buritizeiro, determinou que a balsa fosse amarrada para conserto, navegando na margem errada.
A tripulação da BALSA era experiente no trecho e tinha conhecimento do tráfego daquela região e sabiam (ou deveriam) que naquele horário e local o CIDADE DE ÓBIDOS I estaria navegando, pois em que pese a comitiva de políticos a bordo era de linha normal com passageiros comuns da rota.
Devido à falta de fiscalização e sob a perspectiva de impunidade o piloto e o comandante da balsa se sentiram à vontade em praticar manobras ao arrepio dos regulamentos de navegação, assumindo o risco de produzir o resultado morte.
O CIDADE DE ÓBIDOS I no momento do acidente estava sob o comando do marinheiro auxiliar fluvial Benedito Dias de Oliveira. O comandante contra-mestre Emidio Sarges Goes estava dormindo em um camarote a boreste, sendo acordado pela colisão. Segundo as normas da navegação, os marinheiros auxiliares fluviais não podem ficar no comando desacompanhados. Nesse aspecto, ambas as embarcações estavam sendo conduzidas irregularmente.
Não obstante, não há atribuir ao marinheiro auxiliar fluvial do CIDADE DE ÓBIDOS I qualquer imperícia. Muito pelo contrário: fez o que pode, o que deveria e o que era possível para evitar o acidente. Havia pouco vento, a maré estava enchendo e estava muito escuro.
Antes de uma curva do Rio Jari, próximo à praia da Saudade, o marinheiro Benedito visualizou um sinal de luz em direção contrária. Fez chamada de fonia e não houve resposta porque o o rádio do comboio estava inoperante.
Nesse momento ambas as embarcações não estavam no visual devido à curva à frente. Após a curva a tripulação visualizou o holofote indicando uma embarcação descendo o rio, mas não identificou que era uma balsa. Como não houve resposta no rádio, o piloto do barco sinalizou corretamente sua intenção de manobra a estibordo para dar passagem à embarcação que vinha em sentido oposto. Quando o piloto do barco focou o facho de luz do holofote próximo à sua proa há quase 100 metros viu que se tratava de uma balsa sem sinalização. Guinou todo leme para boreste aproando à margem para evitar a colisão. Em seguida reverteu o leme para emparelhar com o comboio.
No entanto a balsa estava às escuras sem iluminação de navegação, apenas de um holofote de mão. Também não foi tocado sinal de apito ou buzina, vez que o empurrador não possuía tais equipamentos e nem radar.
Mesmo após visualizar o barco com todas as luzes de navegação ligadas, o comandante da balsa determinou que a tripulação continuasse indicando com o holofote a equivocada intenção de manobra de atracação no buritizeiro a margem esquerda na contra-mão.
Há aproximadamente uns 10 metros da margem esquerda ocorreu a colisão do bico de bombordo da balsa com o costado a bombordo da proa do barco. O imediato do barco tentou em vão tapar o rombo no costado com um colchão sem êxito por causa do diâmetro e extensão.
A tripulação do barco solicitou à tripulação da balsa para que segurasse o barco na margem, mas fatidicamente não foram atendidos e deram marcha-à-ré preocupados mais com a carga, arrastando o barco da margem.
Nesse momento os passageiros estavam concentrados na proa a bombordo passando para a balsa na projeção vertical do rombo no casco. Quando a BALSA se desatrelou do casco o peso dos passageiros concentrados na proa a bombordo fez com que adernasse e o rombo do costado ficasse sob a linha d`água, indo a pique.
Os passageiros jogaram-se na água e a tripulação lançou bóias e coletes, indicando a margem a que deveriam nadar. Salvaram-se mutuamente e por atos heróicos alguns passageiros, que destemida e habilmente socorreram os náufragos mais frágeis.
Os 07 (sete) passageiros que ainda estavam nos convés foram tragados pela força da sucção da água quando o CIDADE DE ÓBIDOS I afundou e infelizmente foram a óbito. As redes e as lonas de nylon e tapumes de madeirite nos gradis laterais para proteção do frio e chuva dificultaram o salvamento.
Ressalte-se que as embarcações construídas em madeira não oferecem segurança porque seus compartimentos situados abaixo da linha d’água não são estanques.
Matéria sobre o tema foi publicada na Revista Veja de 06.03.2002 sob a manchete “AMAZÔNIA A VIDA VAI DE BARCO e a morte também”. A reportagem aborda o principal meio de transporte da Amazônia e sua precariedade e foi enfática e contundente: “Estaleiros: há mais de duas centenas deles, funcionando até hoje com técnicas de construção herdadas do período colonial… […] em sua alma, porém, são caravelões lentos e pesados feitos sem planta nem projeto por práticos que não saberiam sequer ler algum papel”.
O RESGATE começou por volta de 07:30 horas de 26.01.02 (sábado) pela 3a Cia. do Batalhão de Combate a Incêndio do Corpo de Bombeiros de Laranjal do Jari e contou com o apoio Jari Celulose, Prefeituras de Laranjal do Jari (Prefeito Miranda) e Vitória do Jari (Prefeito Beirão) e Governo do Estado (Manoel “Mandi”). Outros náufragos foram deslocados para Vitória do Jari e Laranjal do Jari pela L/M Vulto do sr. Ildemar Sarraf Felipe (“Barbudo Sarraf”) e por outras embarcações não identificadas.
Os sobreviventes foram agasalhados na fazenda do ribeirinho sr. “Bezerrinha”, o qual providenciou o abate de duas reses para saciar a fome dos náufragos. Na madrugada (04:00 horas) do dia 27.01.02 (domingo), chegou a equipe de busca e salvamento do Corpo de Bombeiros de Macapá a bordo da Lancha Resgate X e lancha da Marinha do Brasil com mergulhadores.
Ressalte-se a bravura e experiência como mergulhador do sr. “Barbudo Sarraf” pondo em risco a própria vida no resgate.
A 1a vítima a ser encontrada no dia 26.01.02 às 20:30 horas foi Vitor Jose Moreira dos Santos com lesões na fronte. No dia 27.01.02 resgatou-se a 2a vítima Ana Cláudia Colares dos Santos e a 3a vítima, Simone França Teran. Estas duas foram encontradas no casco do barco .
A aplaudida jornalista Simone Teran, linda e ainda na flor da idade, foi encontrada de colete salva-vidas enroscado em um gancho no banheiro, cujo gradil de ventilação estava danificado na agonia da morte para tentar se salvar. Para resgatar o corpo o mergulhador “Barbudo Sarraf” foi obrigado a cortar o colete com uma faca. Uma perda irreparável para o jornalismo amapaense. Em sua homenagem foi criado o prêmio de Jornalismo SIMONE TERÃ.
No mesmo dia 27.01.02, ao longo do Rio Jari foram encontrados a 4a vítima, Karina dos Santos Koury, 5a vítima Archimedes Afonso Vasconcelos da Costa, 6a vítima Luan Richard Guiomar dos Santos e a 7a vítima Alexandre Lino Leite Júnior.
O B/M CIDADE DE ÓBIDOS I foi amarrado a uma árvore mas na noite do dia 30.01.02 o cabo foi retirado e a embarcação foi arrastada 600 m da margem para o fundo do canal de 22 m de profundidade. Não se sabe se o ato foi acidental ou doloso, vez que havia cargas de valor no barco. Posteriormente um navio cargueiro chocou-se com a cobertura do barco CIDADE DE ÓBIDOS I destruindo-o completamente.
Conclui que não teriam vítimas fatais se não fossem os sucessivos erros dolosos da tripulação do comboio, denotando a falta de sensibilidade com a vida de seus semelhantes e ao se precipitar com a marcha-à-ré no instante em que os passageiros pulavam para a balsa, assim como a falta informações da tripulação do barco quanto à gravidade do acidente. Requisitei o indiciamento por homicídio doloso de toda a tripulação e proprietários/armadores do comboio do rebocador Florenzano Neto/Balsa Gonçalves II.
A falta de estanqueidade dos compartimentos do barco foi a causa secundária do seu afundamento, por uso de técnicas defasadas de concepção e construção, problema comum às embarcações amazônicas de madeira.
A deficiência das inspeções navais na região Amazônica é um fator que deve ser sopesado, pois a vida dos passageiros não pode ficar à mercê da consciência e (ir)responsabilidade dos comandantes e armadores/proprietários.
Até hoje não foi reinstalada a Agência da Capitania dos Portos no Vale do Jari desativada pouco t
empo antes desse acidente. O pesado tráfego aquaviário de carga e de passageiros exigem a fiscalização do Estado e não de particulares em se autodisciplinarem, pois as mais comezinhas regras de segurança não são observadas, criando-se um cenário propício à reincidência de novas tragédias. Prova disso foi que em 29.02.2020 naufragou o navio Anna Karoline III matando 39 passageiros por excesso de cargas.
A lição do barco Novo Amapá, maior naufrágio fluvial do Brasil ocorrida em 06 de janeiro de 1981 na foz do Rio Cajari que vitimou 282 passageiros tendo como causa a superlotação não foi assimilada.
São feridas que nunca cicratizarão no coração da sociedade.
Até quando?
Adilson Garcia
Professor, doutor em Direito pela PUC–SP, advogado e promotor de justiça aposentado.