Diante deste cenário, a legitimação de posse é permeada de aberrações legais de difícil solução, em que ocorre uma política explicita de favorecimento de um modelo de desenvolvimento para os grandes negócios de commodities, em que os agricultores familiares, ribeirinhos e os povos indígenas da região amazônica foram e são frequentemente vítimas de conflitos de terra, em que nunca há políticas públicas exitosas da concretização da regularização fundiária rural com título da terra individual, vigorando a opção por aglomeração de terras e de pessoas com planos de uso e de título da terra coletivo, sob o manto estatal, que quando evolui é concedido documentos da terra em que não há possibilidade de obter o licenciamento ambiental, como CRO ou CDRU, com cláusulas resolutivas de 10 (dez) anos, fator impeditivo da obtenção direta do título da terra individual.
Um aspecto importante para análise da estrutura agrária para regularização fundiária brasileira diz respeito às dificuldades na condução do processo de Reforma Agrária, devido a existência de institutos diferentes com base legais distintas, mas que estão intimamente ligados no processo de institucionalização e de reconhecimento da posse, bem como na posterior titulação da terra.
A última legislação que tratou maciçamente da Regularização Fundiária na Amazônia Legal foi a MP nº. 458/2009, transformada na Lei nº. 11.956, de 25 de junho de 2009, seu Decreto regulamentador nº. 10.592, de 24 de dezembro de 2020, e finalmente a Lei nº. 13.465, de 11 de julho de 2017, que realizou alterações na lei de regularização fundiária inicialmente com ações para a Amazônia Legal, depois dessa norma expandiu-se para áreas de atuação do INCRA nas demais regiões. Nesse aspecto qual a contribuição que essa norma realizou como política pública para cumprir sua finalidade de proteger a posse dos pequenos produtores locais? Ou é, mas um ciclo que se repete desde o período colonial sem conseguir assegurar esse direito da posse mansa e pacifica legitimas?
É importante enfatizar que em atenção ao fato de que a Regularização Fundiária não realiza Reforma Agrária, uma vez que a Regularização Fundiária não realiza a distribuição de terras e o objetivo principal da Reforma Agrária é distribuir as terras que não cumprem sua função social.
Vale ressaltar que a buscada legitimação da posse e ocupação no Brasil, é antiga, e para entender é necessária uma digressão temporal desde a fase de ocupação e expropriação, com novos institutos, como calote fundiário institucional, pouco difundido e interpretado, e a famigerada grilagem, sem atendar, ambas, para ancianidade.
Dentro dessa lógica da digressão temporal das normas, têm-se o Tratado de Tordesilhas apresenta-se como o documento inaugural dessa história, assinado em 07 de junho de 1494, por D. João, rei de Portugal, e por D. Fernando e D. Isabel, reis da Espanha, que delimitaram, através de uma linha imaginária, as posses portuguesa e espanhola no território da América do Sul, chamado de “Novo Continente”.
Após essa fase inaugural, temos o período colonial caracterizada pelo Regime de Sesmarias, marcada como o ponto focal do início do Latifúndio no Brasil, e que esse regime perdurou até 1822, antes da promulgação da independência. Vale ressaltar, entretanto, que apesar dos sesmeiros não cumprirem todas as obrigações assumidas, esse Regime permitiu que ocorresse a colonização e o povoamento do interior do país, que se consolidou com dimensões continentais, e que caracterizou-se por favorecer interesses privados em detrimento dos pequenos agricultores, efetivamente os responsáveis pelo cultivo da terra.
Após esse Regime de Sesmarias, o país ficou um longo período sem instituição de normativas que disciplinasse a obtenção de terras, surgindo o Regime de Posses de forma desordenada e sem controle estatal.
É importante salientar que nem mesmo a primeira Constituição de 1824 se preocupou com a regulamentação das terras, somente com o advento da Lei nº. 601, de 18 de setembro de 1850, o problema da aquisição e distribuição de terras de terras devolutas voltou a ser regulamentada, em que estabeleceu a compra como única forma de obtenção de terras públicas, fato que beneficiou os grandes latifundiários, e foi prejudicial aos agricultores familiares sem recurso, entretanto a norma previu o instituto da legitimação da posse a quem constituíssem a “morada habitual”, assim como, delimitou o tamanho das áreas do imóvel máximas legitimáveis nas terras devolutas, em que em nenhum caso a extensão total da posse excedesse a de sesmarias.
Importante lembrar que a norma criou o primeiro Cadastro de Terras denominado de “Registro Paroquial ou Registros do Vigário”, em que não somente os proprietários, mas os que detinham a terra como posse eram obrigados a efetuar o Registro de suas terras junto aos vigários das paróquias, formalizados exclusivamente com a Declaração do Detentor da Terra, fato que originou problemas na estrutura fundiária tendo em vista a inexatidão dos Registros Paroquiais e o difícil processo de identificação dos verdadeiros donos das terras.
Além da inexatidão dos Registros Paroquiais, outro ponto que dificultou ainda mais foi a transferência das terras de uso público da União para os Estados através da Constituição de 1891, visto que esse modelo produziu uma desarmonia federativa, pois, cada Estado administrou a terra de forma livre, não havendo controle e padronização da União quanto a destinação das terras públicas.
Em 1916, é editado o Código Civil, que estabeleceu a via judicial para a Discriminação das Terras Devolutas pertencentes aos Estados. Neste período não se aceitava mais a revalidação das Sesmarias, e nem era possível à Legitimação da Posse, entretanto, era possível a aquisição por Usucapião.
A Constituição de 1937, foi considerada um retrocesso na trajetória do Direito de Propriedade no Brasil, já que não trouxe em seu texto o aspecto social do direito de propriedade dado pela Constituição de 1934. Por sua vez, a Constituição de 1946, dispôs sobre o direito de propriedade condicionado a garantia ao bem-estar social, estabelecendo a Desapropriação por Interesse Social, em que nela os brasileiros são incluídos no acesso à terra, advinda da luta camponesa. O final dos anos 40, até o início da década de 60 foram marcados por este processo de organização, reivindicação e luta no campo rural brasileiro pela Reforma Agrária com o objetivo de promover a Desapropriação por Interesse Social e a Justa Distribuição da Propriedade.
No ano de 1964, o regime militar aprovou a Lei n.º 4.504, de 1964 (Estatuto da Terra). O Estatuto da Terra visava a reformulação da Política Fundiária e da Política de Desenvolvimento Agrário, com o escopo de modernizar as atividades no campo com incentivos fiscais para a agroindústria na Amazônia. Entretanto, essa política pública ocasionou o êxodo rural, desigualdade de renda entre o campo e a cidade, e aumento da taxa de exploração da força de trabalho, resultando em uma problemática social, que ocasionou a ocupação desordenada na Amazônia, gerando processos de desmatamento, falta de fiscalização, escravidão por dívida, violência e conflitos agrários.
No Governo de Sarney (1985-1990), o mesmo colocou a Reforma Agrária com as diretrizes do Estatuto da Terra de 1964 e colocou a Desapropriação como política a ser implementada por meio do I Plano Nacional de Reforma Agrária, aprovado em 1985, entretanto, não prosperou visto que somente 5% da meta das famílias assentadas e da área desapropriada foram realizadas.
Vale observar, que para promover a Reforma Agrária era necessário identificar quais terras eram públicas, quais eram particulares e quais estariam irregulares. Assim a Constituição de 1988, no II, do artigo 21, trouxe como bens da União, somente as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei, incluindo entre os bens dos Estados as terras devolutas não compreendidas entre as da União. Ainda prevê no artigo 188, que a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a Política Agrícola e com o Plano Nacional de Reforma Agrária.
Vê-se, que, a Constituição atual, cujos princípios fornecem as bases das disposições do Código Civil de 2002 de uma visão social e múltipla da propriedade, encontram-se diplomas legais que preveem a legitimação da posse, reconhecendo, nessa circunstância fática, valores humanos inerentes à noção de propriedade, merecedores, portanto, de proteção jurídica.
Com a legitimação da posse e o respectivo reconhecimento da propriedade, depois de atendidos os requisitos legais, o processo de regularização fundiária na Amazônia Legal começou a ter espaço no cenário jurídico, sobretudo após a edição da Medida Provisória nº. 458/2009, transformada na Lei nº 11.952/09, na Lei nº. 12.651, de 25 de maio de 2012 (Código Florestal), e na Lei n.º 13.465/2017, visto que não consta de forma explicita nas leis que definiram a área amazônica brasileira para fins de políticas públicas nas décadas anteriores. O atual sistema de posse de terra do Brasil, particularmente na região amazônica, é extremamente complexo devido ao tamanho da floresta tropical, ao histórico da ocupação e a existência de interesses conflitantes para o uso do território.
Alguns doutrinadores salientam que juntamente com a Lei n.º 13.465/2017, houve uma contribuição para descaracterizar a Reforma Agrária, pois há uma tendência nas políticas públicas de maior apoio aos grandes negócios em detrimento das famílias dos agricultores rurais, já que mesmo reconhecendo a importância da agricultura familiar não se oferece soluções jurídicas que efetivamente possam melhorar a condição de vida desses agricultores rurais que buscam a regularização de terras com as posses e as ocupações legitimas existentes.
De todo exposto, respeitando o posicionamento de alguns doutrinadores, não vejo simplesmente por esse lado de desqualificar a Reforma Agraria com o único fito de buscar a Regularização Fundiária, com normas que alteram os marcos regulatórios. É necessário e urgente, Auditória Fundiária nessa imensidão de terras públicas na Amazônia Legal que foram destinadas a Reforma Agrária e que não cumpriram a função social da propriedade, identificando quem tem os critérios exigidos na lei para serem beneficiários da Reforma Agrária, principalmente nos assentamentos rurais federais, e que o mesmo processo de Auditória Fundiária seja realizado nas Unidades de Conservação de Uso Sustentável. Depois é necessário, avaliar novos processos de transformação de modelos de uso sustentável em terras públicas, como recentemente na implantação de Florestas Públicas Estaduais e Nacionais (FLOTA e FLONA), em que ocorreu calote fundiário, devido ausência proposital de Estudos Técnicos (cadastro ocupacional) e Audiência Pública para identificar as posses e ocupações legitimas e propriedades consolidadas, com o escopo de ter a terra livre para as concessões florestais onerosas, para atendimento das grandes empresas internacionais, com ilicitudes devido existência de pesquisa e exploração mineral nessas áreas.