Vale ressaltar, que a partir dos anos 70, o governo militar desenvolveu uma política desenvolvimentista que pretendia a abertura de novos caminhos na Amazônia e a colonização da região, com o objetivo de pôr fim, a um só tempo, ao martírio da seca do Nordeste e ao isolamento da Amazônia Legal. Para o governo militar, a Amazônia era uma zona de expansão econômica, dotada de recursos ilimitados e destinada a prover de riqueza os mercados e que havia necessidade de integrar as demais regiões. Isso pode ser verificado no programa do governo militar na década de 70, em que foi promovido um programa de colonização na Amazônia para absorver as populações desfavorecidas do Nordeste e resolver o problema da concentração da propriedade rural no país. Como politica de ocupação da Amazônia Legal foram implantados inúmeros assentamentos rurais na Amazônia, todos de forma desordenada, sem estrutura física ou assistência aos assentados, em modelo incompatível com a realidade da Amazônia. Como reflexo negativo dessa politica de ocupação, ultimamente, os assentamentos rurais constituem uma das maiores fontes de alertas de desmatamento na Amazônia Legal, com estudos comprovados do IMAZON, do IPAM, em parceria INCRA e o INPE que identificam o impacto na Amazônia.
A realidade dos projetos de assentamento rural na Amazônia denúncia a difícil relação entre o direito ambiental e o direito agrário, núcleo principal da Política Nacional de Reforma Agrária. Vale ressaltar, que a aptidão produtiva da terra, geradora de riquezas e alimentos para a população, opera-se muitas vezes de encontro à preservação e a conservação da sua biodiversidade diante da necessidade inevitável de superação da pobreza e de desenvolvimento humano. Deste modo, a Politica de Reforma Agrária, envolvida em um discurso deslumbrado de promoção do acesso ao homem sem terra, entretanto não houve observação em relação a proteção e a conservação do meio ambiente. Contudo, essa situação de contradições pode ser solucionada mediante a descoberta das intersecções entre o direito ambiental e o direito agrário.
Apesar da expansão da produção de grãos e da pecuária através do agronegócio e dos grandes projetos de infraestrutura, a Amazônia passa hoje por um processo de transformação em que tenta prevalecer um processo de desenvolvimento ambiental aliado ao agrário. Com isso, a questão ambiental passou a ser inserida na Política Nacional de Reforma Agrária com mais ênfase pela necessidade de produzir sem desmatar com otimização dos recursos naturais. Este entendimento leva a considerar que a terra não ostenta apenas a função de bem de produção na direção de um crescimento econômico, mas também a de proteção e a conservação dos recursos naturais, a fim de alcançar o desenvolvimento econômico e ambiental, premissa da Conferência de Estocolmo de 1972, da ECO-92, e demais Tratados na qual o Brasil é signatário.
É salutar enfatizar que a partir dos anos 90 o INCRA implantou novas modalidades especiais de projetos de assentamento rural, com a inserção da vertente ambiental quando começaram a surgir às primeiras disposições em defesa do bioma amazônico nos projetos de assentamentos rurais, percebendo-se a inadequação do modelo inicial adotado de Reforma Agrária para a Amazônia Legal. Vale acrescentar que aliado a esse novo modelo de assentamentos rurais o INCRA desenvolveu programas de combate ao desmatamento ilegal nos projetos de assentamento, como o Plano de Ação Ambiental e o Programa de Prevenção, Combate e Alternativas ao Desmatamento Ilegal em Assentamentos da Amazônia (PPCADI-Amazônia), denominado Programa Assentamentos Verdes (PAV), o que direciona para a reformulação da Política Nacional de Reforma Agrária para a Amazônia, mesmo processo o Ministério do Meio Ambiente (MMA) desenvolveu através do Plano de Ação para Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia (PPCDAM).
Nesse contexto, Qual o modelo de Reforma Agrária mostra-se compatível hoje para a Amazônia Legal para implantação de assentamentos rurais? Como a Política Nacional de Reforma Agrária pode contribuir para a proteção do meio ambiente nos projetos de assentamento rural da região? A importância desse debate está na necessidade de discutir tema tão crucial à preservação do bioma Amazônia como é a Politica de Reforma Agrária versus Meio Ambiente. Os impactos gerados ao bioma amazônico por algumas modalidades de assentamentos rurais implantados são patentes, de maneira que não há como enfrentar o desmatamento sem discutir a Política Nacional de Reforma Agrária desenvolvida na região, examinando-lhe o passado e indagando o futuro que com ela se pretende alcançar alicerçada ao direito ambiental e seus princípios.
A ameaça fica evidente quando se constata a flexibilização do procedimento de licenciamento ambiental simplificado nos projetos de assentamento rural de Reforma Agrária aprovada pelo CONAMA, como a Resolução CONAMA n°. 458, de 2013, em que o processo de criação ou de reconhecimento de assentamentos rurais não exige mais licenças prévia e de instalação, a qual foi reconhecida pelo STF como constitucional (ADI 5547).
A relevância desse debate centraliza-se ainda na descoberta da posição geopolítica ocupada pela Amazônia Legal. Os projetos nela desenvolvidos, inclusive os de assentamento rural para fins de Reforma Agrária, devem considerar essa nova orientação, para encontrar na Amazônia um processo produtivo adequado ao bioma natural e encerrar o ciclo de desmatamento assumido pelo Brasil nos Tratados Internacionais em que é signatário.
Conceitualmente, a Reforma Agrária não se atém à ideia de distribuição de terras, devendo ser dotada de um sentido amplo onde se incluem outras políticas públicas relacionadas à questão agrária, em especial ao Direito Ambiental. Mais do que o acesso à terra, a Reforma Agrária Integral busca garantir o desenvolvimento econômico e social com vistas na preservação e conservação do meio ambiente, atendendo o pilar do desenvolvimento sustentável. Portanto, a Politica de Reforma Agrária constitui um conjunto de medidas que busca promover a melhor distribuição da terra no interesse de concretizar o princípio da justiça social. Trata-se de um processo de revolução e reestruturação do campo, com o rompimento do paradigma fundiário anterior que não atende mais ao desenvolvimento socioeconômico pretendido para o país. Para isso, a Politica de Reforma Agrária não pode ser resumida a uma simples destinação de lotes de terra sem a mínima condição de monitoramento, de fiscalização, de educação ambiental, e de controle estatal. Deve ser ela integral, isto quer dizer, integrada a outros temas que circundam a questão agrária, procurando uma solução efetiva à situação dos assentados e suas famílias nesse ambiente. Um desses temas é a proteção do meio ambiente e a utilização sustentável dos recursos naturais como politica de governo para promoção do desenvolvimento econômico e social, inclusive incluindo os assentamentos rurais em programa de governo para verticalização da produção, integrandos as demais cadeias produtivas, com o desenvolvimento de pesquisa cientifica e tecnologia, assistência técnica através de extensão rural, e principalmente transparência e critérios técnicos, sociais, na seleção desses assentados.
A história de ocupação da Amazônia e os relatórios de monitoramento por dados georreferenciados das áreas desmatadas nos assentamentos rurais demonstram a difícil relação entre a Política Nacional de Reforma Agrária e a proteção e conservação do meio ambiente, a qual muitas vezes é desprezada pelas necessidades sociais dos agricultores rurais e pelo discurso fecundo que envolve o acesso à terra rural para ocupar a Amazônia Legal. Esse conflito, porém, resolve-se com a prevalência do direito ao meio ambiente e seus princípios, estando a Politica de Reforma Agrária a ele vinculada como essencial para evitar a perda desse bioma.
Desta maneira o Direito Agrário cobra hoje uma visão interdisciplinar e transversal que impõe a transformação de seus institutos conciliando-os com institutos do Direito Ambiental. A atividade agrária deve exercer outras funções que não apenas a produção de alimentos e renda, preocupando-se também com a utilização responsável dos recursos naturais, o que se chama multifuncionalidade da agricultura para otimização desses recursos naturais contidos no bioma amazônico.
Vale ressaltar, que o direito de propriedade não é absoluto, cabendo condicionar os poderes do proprietário aos interesses da sociedade, entre eles a tutela ambiental, ao principio da prevenção e da precaução como essencialidade na manutenção da propriedade. Além disso, não é possível falar em uma verdadeira Reforma Agrária, sem considerar a proteção do meio ambiente em que deve ser implementada, em um viés integrador e abrangente do desenvolvimento rural pretendido. Tais premissas jurídicas, associadas ao exame da situação atual dos projetos de assentamento rural implantados na Amazônia Legal, confirmam a necessidade da existência de um modelo próprio de Reforma Agrária para a Amazônia.
A criação dos assentamentos rurais ambientalmente diferenciados – a saber, o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) e o Projeto de Assentamento Florestal (PAF) – e o êxito na diminuição do nível de desmatamento em relação aos assentamentos convencionais, baseados exclusivamente na distribuição de terra e colonização, demonstram a necessidade de dar tratamento diferenciado à questão agrária na região amazônica. Os estudos das causas diretas e indiretas do desmatamento e dos desafios enfrentados pelos assentamentos rurais na Amazônia provam que a Política Nacional de Reforma Agrária não pode ser delineada e estática em todo o país. Aliás, entre as superintendências regionais do INCRA na Amazônia Legal, o nível de desmatamento não é o mesmo, apontando a existência de perfis diferentes apontados no arco do desmatamento em quem elencam estados e municípios que mais desmatam, em destaque o Estado do Pará.
Na definição da estrutura e objetivos da Política Nacional de Reforma Agrária destinadas para assentamentos rurais, tem que estar vinculada ao direito ao meio ambiente, assim como não podem ser desconsideradas as características locais, os recursos naturais existentes, a vocação produtiva da terra, as populações ali residentes e a de entorno, infraestrutura necessária, educação, como ferramenta para fixar o homem a terra e evitar êxodo rural. A instituição pelo INCRA do PPCADI-Amazônia, integrado com o PPCDAM do MMA, com a fixação de metas e diretrizes para o combate do desmatamento nos projetos de assentamento, confirmam a necessidade e existência de um modelo específico de Reforma Agrária adequado a realidade da Amazônia Legal. As medidas de combate ao desmatamento nos assentamentos rurais podem ser identificadas a partir dos elementos que estruturam esse modelo próprio de Reforma Agrária, quais sejam: a tipologia específica de projetos de assentamento e a forma de condução pelo INCRA. Assim, é essencial que outras vertente sejam observadas, como: a exigência de licença ambiental para os assentamentos; a regularização e recuperação ambientais; a assistência técnica diferenciada; o monitoramento, o controle, a fiscalização, e a educação ambiental. As especificidades da região amazônica, sua fragilidade, bioma e exuberância, evidenciada nas análises da ordem jurídica e do cenário geopolítico, exigem um tratamento diferenciado, uma forma diferente de fazer a Política de Reforma Agrária. Assim, o governo brasileiro deve buscar esforços para maximizar resultados, realizando assentamentos rurais na Amazônia que sejam ambientalmente sustentáveis e considerem as complexidades regionais e o conhecimento tradicional das populações locais e de entorno.
Hoje o quadro na Amazônia Legal reflete que a maioria desses assentamentos rurais implantados se encontram desassistidos de extensão rural, de documentos de plano de uso e de plano de manejo, de regularização fundiária, de créditos, inclusive muitos já deveriam estar emancipados, pois fazem parte de municípios, vilas e distritos, sem olvidar que cumpriram o lapso temporal de mais de 15 anos, e, portanto, já deveriam estar emancipados. Todos esses fatores contribuem para o índice de 41,8% de evasão dos assentamentos rurais na Amazônia Legal.
Entretanto desde a criação da Lei n.º 13.465, de 11 de julho de 2017, há resistência quanto essa emancipação por entender que os assentados sem a proteção do Estado façam a alienação da terra uma vez que de posse do título de propriedade as famílias estariam submetidas a regras mercadológicas ou teriam dificuldade de pagar o documento da terra e consequentemente vão abandonar os lotes configurando ainda mais o êxodo rural. O INCRA tem registrado na região amazônica, atualmente, 3.537 projetos de assentamentos, que ocupam uma área de mais de 70 milhões de hectares, com 753 mil famílias beneficiadas. Portanto, é o momento de repensar esses modelos de assentamentos rurais na Amazônia Legal, inclusive auditagem e de prestação de contas para levantar o quantitativo de lotes abandonados para reassentar os que estão aguardando a reforma agrária. Ressalta-se a importância do fortalecimento de políticas públicas adequadas à realidade nos assentamentos, atendendo às necessidades concretas e particularidades dos assentados, como a melhoria da infraestrutura dos projetos e viabilidade de acesso à informação de mercados dos produtos florestais e agrícolas.
Paulo Figuria – Advogado e professor com atuação em Direito Ambiental, Agrário e Administrativo. Graduado em Administração de Empresas, Arquivologia, Ciências Agrícolas. Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável e Gestão Ambiental, Mestre em Direito Ambiental. Autor de Obras em Direito Ambiental e de Política Pública, Vice-Presidente da Comissão Nacional de Regularização Fundiária da UBAU-Região Norte, e Presidente da Pasta Ambiental da UBAM/AP.