Diarreia aguda é uma das doenças mais antigas e, paradoxalmente, uma das que mais desafiam os sistemas de saúde até hoje. Caracteriza-se pela eliminação de fezes líquidas ou amolecidas, em número superior a três evacuações diárias, com duração inferior a 14 dias. Embora muitas vezes seja tratada como algo simples, a diarreia é um marcador sensível das condições de saneamento, nutrição e educação em saúde de uma população.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ela é a segunda principal causa de morte entre crianças menores de cinco anos, atrás apenas das infecções respiratórias. Estima-se que 1,7 bilhão de casos ocorram por ano, com mais de 500 mil mortes infantis, números que refletem não apenas a doença em si, mas a falta de acesso à água potável e a serviços básicos de higiene.
No Brasil, os números também revelam contrastes regionais. A Região Norte, por exemplo, concentra os maiores índices de internações por doenças diarreicas, especialmente durante os meses de chuva, quando a contaminação da água e dos alimentos é mais frequente.
Dados do Ministério da Saúde indicam que, apenas em 2023, foram registrados mais de 2,5 milhões de casos de diarreia aguda atendidos em unidades públicas de saúde, com cerca de 30 mil internações hospitalares. A maioria dos episódios é leve e autolimitada, mas, em populações vulneráveis, a desidratação pode evoluir rapidamente e se tornar fatal.
A diarreia é resultado de uma resposta fisiológica do intestino a diferentes estímulos. Em mais de 80% dos casos, é causada por agentes infecciosos transmitidos por água ou alimentos contaminados. Entre os vírus, o rotavírus e o norovírus são os principais responsáveis, sendo o primeiro o grande vilão da infância e o segundo mais associado a surtos em ambientes coletivos, como escolas e cruzeiros.
Entre as bactérias comumente envolvidas na diarreia aguda, destacam-se Escherichia coli enterotoxigênica, Salmonella spp., Shigella spp., Campylobacter jejuni e Vibrio cholerae, este último causador do cólera, uma infecção que historicamente provocou grandes epidemias. Já entre os parasitas, Giardia lamblia, Entamoeba histolytica e Cryptosporidium têm importância em áreas com saneamento precário.
O mecanismo básico da diarreia infecciosa envolve o aumento da secreção intestinal e a redução da absorção de água e eletrólitos, processo que faz o organismo eliminar rapidamente o agente agressor. Esse mecanismo, porém, tem um custo, a perda de líquidos e sais essenciais para o equilíbrio corporal. A desidratação é, portanto, o maior risco, e seus sinais incluem sede intensa, boca seca, redução do volume urinário, olhos fundos, sonolência e, em casos graves, colapso circulatório.
A OMS estima que 90% das mortes por diarreia sejam atribuídas à desidratação não tratada. A boa notícia é que o tratamento é simples e altamente eficaz. O soro de reidratação oral (SRO) é uma das descobertas médicas mais impactantes do século XX. Desenvolvido e aprimorado por pesquisadores brasileiros da Universidade Federal da Bahia na década de 1960.
O soro oral combina glicose e sais minerais em proporções exatas, permitindo a absorção de água mesmo durante a diarreia. A disseminação dessa tecnologia reduziu em mais de 70% a mortalidade infantil por diarreia nas últimas décadas. Além disso, a vacinação contra o rotavírus, incorporada ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) em 2006, diminuiu em mais de 40% as internações hospitalares por diarreia grave em crianças menores de 5 anos.
Apesar dos avanços, os desafios persistem. O saneamento básico ainda é um gargalo estrutural no Brasil. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 35 milhões de brasileiros ainda vivem sem acesso à rede de água tratada e quase 100 milhões sem coleta de esgoto. Essas condições criam um terreno fértil para surtos e reinfecções.
Um Estudo da Fiocruz (2022) mostrou que crianças que vivem em áreas sem saneamento têm até duas vezes mais episódios de diarreia por ano do que aquelas que vivem em regiões urbanas com infraestrutura adequada.
O intestino humano abriga um ecossistema de mais de 100 trilhões de micro-organismos, conhecido como microbioma intestinal, responsável pela digestão, produção de vitaminas e regulação do sistema imunológico. Quando esse equilíbrio é rompido, seja por infecção, antibióticos, estresse ou dieta inadequada, o corpo manifesta sintomas que vão além da diarreia, incluindo alterações de humor e fadiga.
Pesquisas recentes mostram que o restabelecimento do microbioma, com o uso de probióticos e alimentação rica em fibras, pode reduzir a duração e a intensidade dos episódios de diarreia, além de prevenir recorrências.
Em adultos, um tipo especial de diarreia se destaca, a diarreia do viajante, que afeta entre 20% e 50% dos turistas internacionais, sobretudo aqueles que visitam países com clima tropical e infraestrutura sanitária deficiente. Normalmente causada por cepas de E. coli, o quadro é autolimitado, mas reforça a importância da higiene alimentar mesmo em viagens curtas.
A prevenção continua sendo o pilar mais eficiente. Lavar as mãos com água e sabão antes das refeições e após usar o banheiro é o ato isolado mais eficaz na prevenção da diarreia, capaz de reduzir em até 40% os casos em crianças, de acordo com a OMS. O tratamento adequado da água, o cozimento completo dos alimentos, o armazenamento correto e a eliminação sanitária de dejetos completam o conjunto de medidas que podem praticamente eliminar a doença em escala populacional.
Curiosamente, o Dia Mundial da Lavagem das Mãos, celebrado em 15 de outubro, coincide com o Dia Mundial de Combate à Diarreia, um lembrete simbólico de que a solução para um dos males mais antigos da humanidade continua sendo um gesto simples. A diarreia aguda é, em última análise, uma mensagem do corpo e da sociedade, ou seja, onde falta higiene, infraestrutura e atenção, ela se manifesta. Entender isso é essencial não apenas para tratar, mas para prevenir e garantir que algo tão básico quanto a água limpa e a educação em saúde continue sendo a mais poderosa das vacinas.
Diarreia Aguda
Especialista em Nefrologia e Clínica Médica; Membro titular da Sociedade
Brasileira de Nefrologia Professor da Universidade Federal do Amapá
(UNIFAP); Mestre em Ciências da Saúde Preceptor de Clínica Médica. CRM
892 RQE 386

