A decisão liminar proferida pelo ministro Gilmar Mendes, ao restringir à Procuradoria-Geral da República a iniciativa para oferecer denúncia por crimes de responsabilidade imputados a ministros do Supremo Tribunal Federal, reacendeu um debate que remonta às próprias bases do constitucionalismo contemporâneo. As reações políticas que se seguiram — sobretudo as manifestações de Davi Alcolumbre e Randolfe Rodrigues, respectivamente, presidente do Senado e líder do governo — revelam, antes, uma leitura deficitária do desenho institucional estabelecido pelo constituinte de 1988. Como advertia Paulo Bonavides, a Constituição é o centro axiológico do sistema jurídico, e qualquer interpretação que dela se afaste incorre em reprovável desvio hermenêutico e subversão de seus valores. Nesse contexto, a decisão do decano não inova, apenas reafirma a supremacia normativa do texto constitucional e a estrutura rígida que confere ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública, conforme dispõe o artigo 129, inciso I, da Carta Política de 1988.
A doutrina constitucional majoritária sempre reconheceu que a titularidade privativa da ação penal pública representa não apenas uma regra técnica, mas uma garantia institucional destinada a assegurar a independência funcional dos órgãos jurisdicionais. José Afonso da Silva, ao tratar da separação de funções estatais, enfatiza que “a Constituição não admite a fusão entre acusação e julgamento”, sob pena de violação do devido processo legal. No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso registra que o sistema acusatório brasileiro se orienta pela clara distinção entre quem acusa, quem julga e quem defende, exigindo que a iniciativa penal seja exercida por instituição dotada de imparcialidade funcional e blindada contra interferências políticas. Atribuir ao Senado a prerrogativa de formular denúncias criminais equivaleria, portanto, a instaurar um modelo híbrido, incompatível com o arranjo constitucional vigente.
Ainda que os crimes de responsabilidade tenham natureza político-jurídica, sua dimensão penal é incontornável. Como reconhecem doutrinadores como Pontes de Miranda e Celso Bastos, a responsabilização criminal de altas autoridades — em especial aquelas que detêm foro por prerrogativa de função — exige a atuação do Ministério Público, sob pena de nulidade absoluta do processo. A jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal, frequentemente em votos paradigmáticos de Celso de Mello, reafirma o papel da Procuradoria-Geral da República como órgão acusador único em matéria penal envolvendo autoridades com prerrogativa de foro. Trata-se, como ensinou Canotilho em seu estudo sobre constituições rígidas, de um “núcleo essencial de competências” que não pode ser modificado nem por lei ordinária nem por interpretação extensiva de órgãos políticos.
Desse modo, a decisão liminar do ministro Gilmar Mendes não implica redução das competências do Senado da República. O Senado permanece como órgão que processa e julga, mas, à luz do devido processo legal e da separação de Poderes, não pode, simultaneamente, atuar como órgão acusador. Ronald Dworkin, ao defender o princípio da integridade do Direito, sublinha que instituições democráticas devem agir segundo critérios consistentes, não conforme interesses conjunturais. Assim, ao reafirmar que a iniciativa penal pertence exclusivamente ao Ministério Público, a decisão do decano resguarda a coerência sistêmica do constitucionalismo brasileiro. Como frequentemente recordava Celso de Mello, “nenhum Poder da República está acima da Constituição”. A liminar, portanto, longe de representar usurpação de prerrogativas, expressa fiel observância ao texto constitucional, impedindo que o processo penal seja convertido em instrumento de disputa política e reafirmando a supremacia da ordem jurídica democrática.

