Houve o tempo dos imperadores estigmatizados como psicopatas malvados, talvez bem simbolizada na intolerante rainha “cortadora de cabeças” de Alice no País das Maravilhas.
Contudo, aqui, nestas terras brasileiras, nem os mais longevos imperador e ditador deixaram de se divertir quando eram retratados em cômicas e irônicas caricaturas. Tanto Dom Pedro II quanto Getúlio Vargas inspiraram expressões artísticas e críticas, pela via das caricaturas e, a julgar pelo que nos chega dos jornais das duas eras, nem todos os desenhos eram exatamente leves ou inocentes.
Curiosamente, é bem verdade que o último, sobre notícias e textos, fez correr solta a tesoura da censura, como se as imagens dissessem menos do que as palavras…
Nos tidos anos de chumbo, houve censura e, ao mesmo tempo, bom espaço para manifestações de humor e caricaturas. Quem viveu, sabe, como exemplificam personagens de Chico Anysio e Jô Soares – decerto não “cancelados” pelo público. Nascia, ainda, o Pasquim, em 1969, curiosamente o ano de endurecimento do regime, com o AI 5. Para os mais novos, fica fácil encontrar, na internet, vários episódios, piadas e quadros nesse sentido, representativos de uma época.
Mais recentemente e em plena democracia, parece que as coisas se tornam menos tolerantes e que estamos menos sujeitos a críticas e, até, que quase tudo tenha se tornado passível de soar ofensivo. Percebe-se que há menos tolerância, como se o riso fosse danoso, o que nos faz lembrar de sábios diálogos da obra de Humberto Eco, intitulada O Nome da Rosa, com a ideia de que o riso seria representação da desobediência.
Decerto obedecer ou desobedecer não são dependentes do riso e de representações alegres ou festivas. Pelo contrário, é crível que, com comida na mesa e mínimas condições de vida, além de boa postura e compostura das lideranças, o povo comemora e faz de qualquer acontecimento motivo de festa e alegria. Desnudar o riso e a alegria como elementos de desrespeito somente faria sentido se o respeito não fosse antes despido pelos líderes de plantão.
Por outro lado, a crítica à unidade de pensamento sempre foi bandeira importante, com a simbologia da resistência. Vimos isso em Paris 1968 e em tantas manifestações mundo afora, como, também, aqui. Acaso as “Diretas já” não traziam, também, esse sinal? Aliás, a simbologia histórica da Revolução Francesa não teria ocorrido sem que Robespierre, Voltaire, Descartes e outros produzissem os seus textos e discursos questionadores. Afastado desses letrados e motivado pelo mesmo espírito, o povo se insurgia contra a opressão e se levantava para exigir que a sua voz fosse ouvida. Desses movimentos e ciclos críticos e revolucionários surgiu, dentre outras coisas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
A própria Democracia moderna revela a liberdade como algo fundamental e, assim, tem estado em voga, como tipo de pilastra estruturante do edifício democrático. Talvez se possa dizer que sem liberdade não possa haver democracia… não apenas a eleitoral, como a que conhecemos com o sufrágio universal, mas, também e principalmente, a que se revela em incontáveis práticas cotidianas.
A liberdade é, portanto, estruturante para a democracia, não sendo errado se dizer que esta não pode existir sem aquela. A Democracia não se apresenta como algo pronto e acabado, mas como obra em constante aprimoramento e edificação. As idas e vindas dos processos políticos pode sofrer influência dos ventos econômicos, políticos e partidários e não deve, sob qualquer argumento, reprimir a ampla constituição da liberdade de expressão e de ir e vir e os demais traços que, porventura, possam nos apresentar a configuração de um ser humano livre.
Curiosamente, parece que as ideias não têm tido bons espaços para se enfrentar, com pureza. No lugar de ideias dialogando, temos batalhas entre pessoas. Onde as ideias deveriam ser respeitosamente expostas e ouvidas, temos assistido a enfrentamento entre os que as expõem e os que se negam a ouvir. A necessidade de pertencimento a um grupo tem intensificado a sensação de versão da verdade para os lados. Acredita-se no que se quer. A essência verdadeira fica relegada a um obscuro cemitério. O que importa é aquilo em que se quer crer. E isso é vendido como uma marca, um produto ou uma bandeira que é carregada orgulhosamente por alguns e seguida por outros. As cabeças, erguidas ou não, seguem os líderes, como se isso fosse o bastante, em vez de pensar por si e valorizar as tantas lutas do passado recente da história, onde o indivíduo quis ser respeitado. Lutamos para que cada um fosse aceito como é e, de repente, parece que isso tem sido menos importante do que os times e agrupamentos que mais têm rachado a malha social do que contribuído para a individualização da liberdade e do individual livre pensar e agir.
Sempre que alguém fala um pouco diferente do todo ou desses grupos, é “cancelado”, certa versão moderna dos apedrejamentos de outrora, onde o diferente, o estrangeiro ou o questionador era logo exterminado. Não foi assim com os espíritos livres, que ameaçavam o status quo? Os exemplos históricos são abundantes, mas parece que nos esquecemos de quão grandiosa pode ser a humanidade e, ao mesmo tempo, quão mesquinha e aterradora.
Crer ou descrer parece simbolizar o nosso tempo. Um conceito é uma fórmula que deve servir às situações adequadas de sorte a confirmar, exatamente, a sua validade e, nesse rumo, poderíamos ver representantes das minorias nas extremamente representativas equipes olímpicas e na copa do mundo de futebol. Temos aberto mão da nossa essência individual, algo personalíssimo e individual e, portanto, intransferível, simplesmente para ingressar num clube onde a nossa carência se sinta acolhida. O bom é que todos erram ou acertam, juntos – e isso nos purga da responsabilidade de assumir a autoria de um pensamento ou de uma ação.
Ficamos protegidos em grupo, como peixe em cardume – ainda que isso represente uma certa anulação do nosso eu. Sobre isso, Paolo Gerbaudo fala em “coreografia de assembleia” e Byung-Chul Han em conceito de “enxame”, com a ideia de adequação à multidão. Ora, toda adequação exige um “encaixe” e esse para ser perfeito em seres chamados de indivíduos, exige uma certa adequação ao contexto – o que pode gerar uma certa neutralização ou expurgo de algo pessoal.
Consumimos política como quem torce por time de futebol ou compra roupa da moda. Trocamos o que nos faz bem pelo que nos permite ser aceitos. Repetimos palavras, máximas e gestos, como se isso nos curasse do nosso medo de pensar um pouco diferente. Aplaudimos o show, por termos estado lá, ainda que não o tenhamos curtido tanto assim. Temos ido aos festivais de música para postar fotos e participar do evento e essa validade não significa ter que conhecer músicas dos artistas. Temos nos limitado a frases de efeito, mesmo sem entender o seu significado. Temos sido sofisticados demais por fora e carentes demais por dentro.
Interessante é pensar que o enxame não nos faça circular e voltar a um ponto de referência, de acolhimento e de retorno, parecendo que, ao nos encaixar no modelo, sigamos a rota não traçada pelo grupo que nos leva cada vez mais longe do ponto de partida de cada um. Não somos um enxame de abelhas que tem uma colmeia para cuidar. Somos voadores pelo perfume de ideias ou verdades e, por elas, seguimos. Quando o sonho se desfaz, não há volta para casa, porque não há casa para voltar. Ideias e palavras expostas não vêm e vão para casinhas. Têm vida própria, além dos portos mentais de onde partiram.
Se fossem pelas ideias circulando e que fossem lidas, aceitas ou não, tudo estaria prosperando. A questão é que temos rejeitado a leitura de textos que não digam o que queremos ler, do mesmo modo que temos rejeitado ouvir palavras e discursos que não correspondam, exatamente, ao que queremos ouvir. Com isso, temos deixado de pensar sobre o que os outros pensam e temos rejeitado as versões alheias sobre os mesmos fatos que vivenciamos. Assim, temos nos negado a refletir e a aprimorar o nosso pensar e o nosso agir. Temos forçado a nossa versão, por acreditar nela e, também, por vigor do nosso ego, que quer nos fazer acreditar que estamos certos e que os outros estão errados. Rimos das caricaturas dos outros e condenamos quando fazem caricatura do que simboliza a nossa crença. Temos sido rigorosos com os outros e complacentes conosco.
Temos dois pesos e duas medidas, numa única sociedade. Falamos em tolerância, sendo intolerantes. Falamos em paz, querendo guerra. Falamos demais e escutamos pouco.