A vida seguiu ao longo dos últimos quatro meses, ainda que em um curso em nada considerado normal para os parentes de Michel Nisenbaum, 59, o brasileiro-israelense sequestrado pelo Hamas, sobre quem não se tem nem uma notícia sequer desde o último 7 de outubro.
A família cresceu. Avô de cinco netos antes de ser levado à força para a Faixa de Gaza, Michel há um mês e meio ganhou mais um neto para integrar a turma. O nome do menino é Oz (coragem, em hebraico).
É de certo modo a mensagem que a família tenta sustentar como mantra. “No momento em que a esperança morrer, nós não vamos ter mais para o que viver”, diz Mary Shohat, 66, a irmã mais velha de Michel, que fala de sua casa em Beersheba, conhecida como a capital do deserto de Neguev.
A vida da própria primogênita teve de voltar aos trilhos: enfermeira, de manhã Mary trabalha em um serviço em domicílio para a população idosa ao lado de uma assistente social. De tarde, encontra a mãe de 87 anos, para quem o sequestro de Michel foi um divisor de águas.
“A mãe está bastante mal, com muitos medos. No dia que eu contei para ela que o Michel estava desaparecido [levaram semanas para a confirmação oficial], ela perdeu totalmente a memória do dia a dia.”
“Ela não sabe que dia é hoje. Quase não sabe mais ler o relógio. Ela pode olhar a hora e não sabe se é de manhã ou de tarde. Se ela tem alguma coisa para fazer, eu tenho que escrever para ela, porque ela não se lembra. Estamos passando por um mau tempo o tempo todo.”
Na última semana, o Exército de Israel disse ter comunicado 31 famílias de reféns —ao menos 136 ainda eram mantidos em Gaza àquela altura— de que seus parentes morreram.
Mary não recebeu nenhuma ligação do militar responsável pela comunicação com sua família. Um alento.
Ainda assim, já são mais de quatro meses vivendo “às cegas”. “Estamos na mesma situação: sem saber nada, sem nenhuma notícia nova. Cada dia que passa é pior.”
É uma realidade que essa família brasileira vivendo há quase 50 anos em Israel nunca imaginou enfrentar. Foi justamente Mary a primeira da família a fazer a aliá (maneira como judeus se referem ao retorno a Israel): aos 17, logo após completar o ensino médio e um ano após passar um período trabalhando nos kibutzim (comunidades agrícolas), emigrou de vez.
O caçula Michel iria um ano depois, levado por Mary. A irmã afirma que ele havia se envolvido com “grupos juvenis violentos” no Brasil e que fazer a aliá foi visto como uma chance de tirá-lo desse universo aos 13 anos. A mãe deles iria anos depois, quando Mary se casou.
Assim, a família descendente de judeus que emigraram de Rússia e Polônia testemunhou alguns dos momentos mais difíceis da história israelense, como, por exemplo, as duas intifadas, ondas de protestos palestinos contra Tel Aviv de 1987 a 1993 e de 2000 a 2005. Mas nada comparado aos dias atuais. “Nunca, em absoluto, imaginei isso.”
“Guerra? Sim. Matar pessoas, soldados, como ocorre em todos os lados quando tem guerra. Mas não algo como raptar pessoas que não têm nada a ver, tanto crianças como pessoas de idade. É uma loucura.”
“Sempre soube e sigo consciente de que Israel está no meio de países árabes e que, por isso, vai ser muito difícil ter paz, não ter problema com nenhum lado. Mas o que eu vejo hoje em dia é que não tem muito diálogo. Tentam fazer diálogo, mas não sei o quanto pode ter ainda. Espero que possam chegar a acordos. Pelo menos para os sequestrados voltarem para as casas. Sobre a paz eu tenho muitas dúvidas.”
O eclodir da guerra após o massacre cometido pelo Hamas no sul do território de Israel congelou a esperança mesmo entre os mais assíduos pacifistas da região, em um sentimento que, guardadas as devidas proporções, se assemelha ao que ocorreu quando a Segunda Intifada reverteu os avanços dos Acordos de Oslo (1993).
Michel teria sido capturado quando, ao sair de Sderot, onde morava, se dirigia ao kibutz Re’im para buscar uma das netas que estava na casa do pai, um militar. A menina, camuflada pelo pai com um casaco e distraída com um brinquedo durante os ataques no local, sobreviveu.
Mary diz ter consciência de que os bombardeios do Exército em Gaza podem matar os reféns. “Há coisas que têm de ser feitas. Temos certeza de que eles fazem tudo o que podem para não bombardear nossos queridos. Mas isso pode acontecer. Temos a consciência de que nós podemos perder os nossos queridos com as bombas de Israel.”
“Eu acho que eles fazem o que eles podem, mas eu creio que eles podem fazer mais do que eles estão fazendo”, declara Mary.
Michel não é a única marca deste conflito em sua família. O irmão de uma das noras de Mary, esposa de seu caçula, foi assassinado pelos terroristas no kibbutz Erez, também próximo da fronteira com Gaza.
Há tantos anos em Israel, a família não pensa em deixar o país. Os laços com o Brasil são preservados nos detalhes. Com a mãe, Mary mantém vivo o português. Mas diz que Michel, o irmão natural de Niterói (RJ), é quem mantém maior facilidade com a língua. E na comida: nos invernos, a mãe deles costuma fazer grandes quantidades de feijoada e repartir entre os filhos em tupperwares. Mary, às vezes, também tenta fazer brigadeiro. “Mas não é sempre que sai.”
Com informações Folha de São Paulo