O debate sobre o preço da comida na COP30 em Belém não é sobre comida. É sobre hierarquia e preconceito. O espanto dos visitantes diante do valor de um almoço na Amazônia escancara uma velha ferida: a crença de que aqui tudo deve ser barato, como se o trabalho do amazônida, o saber culinário de sua gente e o custo de sua sobrevivência valessem menos que em qualquer outro lugar. Como sempre, o olhar externo chega com a arrogância de quem acredita ter descoberto uma aldeia que precisa ser corrigida e que seus produtos e serviços devem ser pagos com bugigangas. Essa lógica, herdada da exploração e travestida de preocupação ecológica, revela o mesmo ranço colonial denunciado por Alfredo Wagner de Almeida: o de quem vê na Amazônia apenas o depósito de recursos que alimenta o conforto de outros.
Esse preconceito econômico é a expressão mais palpável de uma estrutura de dominação que insiste em se perpetuar. O geógrafo Milton Santos já falava da “globalização perversa” — aquela que conecta tudo, menos as dignidades. Na cabeça do estrangeiro, o caro só é aceitável em Nova York, Paris ou São Paulo. Na Amazônia, tudo precisa ser simples, rústico, quase gratuito. A floresta é linda, mas o povo deve continuar pobre para servir de contraste à paisagem. Essa mentalidade, como apontava Aníbal Quijano, é a colonialidade do poder aplicada ao cotidiano: o Norte define o que vale e o que deve custar. Assim, o preço de um prato de peixe vira escândalo — não porque é caro, mas porque quem o vende é um amazônida que ousa cobrar o justo.
Mas a Amazônia é, antes de tudo, uma usina de saber e resistência. O que o turista chama de “simples” é, na verdade, uma complexa rede de cultura e conhecimento acumulada por séculos. Eduardo Viveiros de Castro mostrou que o pensamento indígena é um dos mais sofisticados sistemas filosóficos sobre a relação entre o homem e a natureza — algo que o mundo civilizado tenta reinventar em conferências bilíngues e jantares orgânicos. O problema é que esse mesmo mundo continua esperando que a Amazônia ofereça sabedoria e recursos, mas jamais cobre por eles. Quando o açaí deixa de ser “exótico” e passa a ter preço de mercado, ele fere a ordem simbólica: o pobre não pode vender caro, o selvagem não pode se valorizar.
É preciso dizer sem rodeios: o preconceito contra o preço na Amazônia é o preconceito contra o valor da Amazônia. O respeito à floresta começa pelo respeito ao povo que nela vive. Nenhuma conferência internacional, por mais verde que se pinte, conseguirá esconder a contradição entre o discurso ambiental e a prática colonial. Como advertia Darcy Ribeiro, o Brasil ainda não se entendeu por que não reconheceu sua parte amazônica — a mais generosa e a mais desprezada. Aqui não queremos ser o quintal do planeta nem o cartão-postal de ninguém. Queremos o direito de cobrar o preço justo por aquilo que o mundo inteiro consome: o fruto, o peixe, a arte, o saber. O que está em jogo não é o valor da comida, é o valor de um povo. Isso revolta e pede uma resposta à altura. Invoca-se, como resposta, a imagem do treinador Givanildo, clássica no Pará, para dizer: “Tá aqui teu preconceito, cara-pálida”!

