Cientistas Investigam!
O Mistério do Ferro Desaparecido
Imagine um cenário digno de um filme de ficção científica: dentro do intestino de crianças com autismo, há um grupo de bactérias que pode estar “sequestrando” ferro, transformando-o em formas que o corpo não consegue usar. Parece coisa de filme, mas é pura realidade científica! Um estudo recente publicado na revista Microbiology revelou que bactérias do gênero Desulfovibrio, encontradas em maior quantidade no intestino de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), podem estar envolvidas nesse processo misterioso.
Mas por que isso importa? Bem, o ferro é essencial para o funcionamento do corpo humano. Ele ajuda no transporte de oxigênio no sangue, na produção de energia e até no funcionamento do cérebro. Se essas bactérias estão realmente “roubando” ferro, isso poderia explicar por que muitas crianças com autismo sofrem de deficiência de ferro. E, se for esse o caso, talvez possamos encontrar novas formas de tratar ou aliviar alguns dos sintomas do autismo.
Vamos mergulhar nessa história fascinante e descobrir o que os cientistas estão descobrindo sobre essas bactérias “ladras de ferro”.
O Autismo e o Eixo Intestino-Cérebro
Antes de falarmos sobre as bactérias, precisamos entender um pouco sobre o autismo e sua conexão com o intestino. O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição complexa que afeta o desenvolvimento do cérebro, levando a dificuldades na comunicação, interação social e comportamentos repetitivos. Mas, nos últimos anos, os cientistas começaram a notar que o autismo pode estar ligado a algo que acontece bem longe do cérebro: o intestino.
Sim, o intestino! Pesquisas recentes mostram que existe uma conexão poderosa entre o cérebro e o intestino, conhecida como “eixo intestino-cérebro”. O que acontece no intestino pode influenciar o funcionamento do cérebro e vice-versa. E uma das peças-chave desse quebra-cabeça é o microbioma intestinal – a comunidade de bactérias, vírus e outros microrganismos que vivem no nosso sistema digestivo.
Em crianças com autismo, o microbioma intestinal parece ser diferente do de crianças sem autismo. E uma das diferenças mais intrigantes é a presença aumentada de bactérias redutoras de sulfato, como as do gênero Desulfovibrio. Essas bactérias são conhecidas por sua capacidade de transformar sulfatos em sulfetos, um processo que pode ter implicações importantes para a saúde.
As Bactérias Desulfovibrio – As Vilãs ou Mero Coincidência?
As bactérias Desulfovibrio são um grupo de microrganismos que vivem em ambientes sem oxigênio, como o intestino humano. Elas são especialistas em reduzir sulfatos, um processo que produz sulfetos como subproduto. Até aí, tudo bem – afinal, muitas bactérias fazem coisas estranhas no nosso intestino. O problema é que esses sulfetos podem ser tóxicos em grandes quantidades e, pior ainda, podem se ligar ao ferro, transformando-o em formas que o corpo não consegue absorver.
Agora, imagine o seguinte cenário: você tem uma criança com autismo, cujo intestino está cheio de Desulfovibrio. Essas bactérias estão lá, felizes da vida, transformando sulfatos em sulfetos e, de quebra, sequestrando o ferro que a criança precisa para se desenvolver. O resultado? Deficiência de ferro, que pode levar a uma série de problemas, incluindo fadiga, dificuldades cognitivas e até atrasos no desenvolvimento.
Mas será que essas bactérias são realmente as vilãs da história? Ou será que elas são apenas coincidentemente mais abundantes em crianças com autismo, sem causar nenhum mal? Essa é a pergunta que os cientistas estão tentando responder.
O Estudo que Isolou as Bactérias “Ladras de Ferro
Agora vamos ao cerne da questão: o estudo que isolou essas bactérias do intestino de crianças com autismo e descobriu que elas podem estar imobilizando ferro em formas cristalinas insolúveis. O estudo foi conduzido por uma equipe de pesquisadores da Universidade Estatal de Tomsk, na Rússia, e publicado na revista Microbiology.
Os pesquisadores coletaram amostras de fezes de crianças com autismo e usaram técnicas de cultivo para isolar duas cepas de Desulfovibrio. Uma delas, chamada Desulfovibrio desulfuricans AYS, mostrou-se particularmente interessante. Quando cultivada em um meio rico em ferro, essa bactéria foi capaz de transformar o ferro em cristais de sulfetos, como a greigita (Fe3S4) e a pirita (FeS2). Esses cristais são formas de ferro que o corpo não consegue absorver, o que significa que o ferro fica “preso” e indisponível para uso.
Mas como exatamente isso acontece? Bem, as bactérias Desulfovibrio produzem sulfetos como parte de seu metabolismo normal. Esses sulfetos podem se ligar ao ferro, formando cristais insolúveis. E, uma vez que o ferro está preso nesses cristais, ele não pode mais ser absorvido pelo intestino e usado pelo corpo.
O Que Isso Significa para Crianças com Autismo?
Agora que sabemos que essas bactérias podem estar “roubando” ferro, o que isso significa para as crianças com autismo? Bem, a deficiência de ferro é um problema comum em crianças com TEA, e pode levar a uma série de sintomas, incluindo fadiga, dificuldades de concentração e atrasos no desenvolvimento. Se as bactérias Desulfovibrio estão realmente contribuindo para essa deficiência, isso poderia explicar por que tantas crianças com autismo têm níveis baixos de ferro.
Mas há mais: os cristais de sulfetos de ferro, como a greigita, têm propriedades magnéticas. Isso significa que eles podem criar pequenos campos magnéticos dentro do intestino. E, embora isso possa parecer coisa de ficção científica, há evidências de que campos magnéticos podem afetar as células do corpo, incluindo as células nervosas. Será que esses cristais magnéticos poderiam estar influenciando o cérebro das crianças com autismo? É uma possibilidade intrigante, mas ainda precisamos de mais pesquisas para entender se isso realmente acontece.
O Futuro da Pesquisa – Podemos Intervir?
Agora que sabemos que essas bactérias podem estar envolvidas na deficiência de ferro em crianças com autismo, a próxima pergunta é: o que podemos fazer a respeito? Uma possibilidade é tentar reduzir a quantidade de Desulfovibrio no intestino. Isso poderia ser feito através de probióticos, prebióticos, ou até mesmo transplantes de microbiota fecal – um procedimento em que as bactérias “boas” de um doador saudável são transferidas para o intestino de uma pessoa com autismo.
Outra abordagem seria tentar “liberar” o ferro que está preso nos cristais de sulfetos. Isso poderia ser feito através de suplementos de ferro ou de substâncias que ajudam a dissolver os cristais. No entanto, essa é uma área que ainda precisa de muita pesquisa, pois não queremos acabar causando mais problemas ao tentar resolver um.
Conclusão: Um Novo Capítulo na Compreensão do Autismo
O estudo das bactérias Desulfovibrio e seu papel no autismo é um exemplo fascinante de como a ciência está começando a desvendar os mistérios do microbioma humano. Embora ainda haja muitas perguntas sem resposta, essa pesquisa abre novas portas para a compreensão e o tratamento do autismo.
E, enquanto os cientistas continuam a investigar, podemos nos maravilhar com a complexidade do corpo humano e com o fato de que, às vezes, as respostas para os maiores mistérios da saúde podem estar escondidas nos lugares mais inesperados – como no intestino.
Então, da próxima vez que você ouvir falar de bactérias, lembre-se: nem todas são más. Mas algumas, como as Desulfovibrio, podem estar envolvidas em um dos maiores quebra-cabeças da medicina moderna. E quem sabe? Talvez, no futuro, possamos usar esse conhecimento para ajudar crianças com autismo a terem uma vida mais saudável e feliz.
Referências:
- Bezawada, N., Phang, T.H., Hold, G.L., e Hansen, R. (2020). Autism spectrum disorder and the gut microbiota in children: a systematic review. Annals of Nutrition and Metabolism, 76, 16–29.
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- Tomova, A., Husarova, V., Lakatosova, S., Bakos, J., Vikova, B., Babinska, K., e Ostatnikova, D. (2015). Gastrointestinal microbiota in children with autism in Slovakia. Physiology & Behavior, 138, 179–187.