Se por um lado o caso Vinícius Junior mostrou um lado podre da sociedade espanhola, racismo impregnado no dia a dia, por outro vimos o vigor da democracia digital como instrumento de denúncia e mobilização contra este tipo de excrescência. As redes estão tendo um papel importantíssimo na disseminação das mensagens do próprio Vinicius, jogador admirável e livre dos grilhões do analfabetismo social e do fanatismo ideológico.
As redes são usadas para todo tipo de barbaridade, especialmente na política e nas patologias sociais. Elas nos têm mostrado o quanto os homens são parecidos, independente de viverem em regiões desenvolvidas, como a União Europeia ou os Estados Unidos.
O racismo merece uma discussão aberta, especialmente na Europa, onde as guerras de conquista e a escravidão duraram alguns milênios e foram separando as pessoas pela cor da pele, religião, cultura ou etnia, como é o caso dos judeus, ciganos ou dos negros muçulmanos do outro lado do Mediterrâneo. Nunca devemos esquecer que os maiores escravocratas do mundo foram os europeus, inundando de africanos suas colônias. A França pregava a liberdade, igualdade e fraternidade enquanto esmagava o Haiti rebelde.
Vini Jr. foi vítima desta sociedade branca, colonizadora da América e da África, sempre olhando o resto do mundo de cima para baixo. Na Espanha, por exemplo, há preconceito contra os latino-americanos, chamados simplesmente de latinos e discriminados independente da cor da pele ou da escolaridade. Em Portugal, idem. A única coisa que torna negros e latinos mais palatáveis é o dinheiro, o tamanho da conta bancária. Mesmo assim, não é em todo lugar. Nas arquibancadas dos estádios isso não existe.
A agressão ao jogador brasileiro, menino vitorioso nascido em São Gonçalo (RJ), criado nas categorias de base do Flamengo, que conquistou o mundo com o seu talento, virou alvo de protestos nas redes sociais e em poucos minutos rodou o mundo. O depoimento do próprio Vinicius, pura elegância, sem rancor ou ódio ajudou a viralizar ainda mais o repúdio mundial e obrigou o governo espanhol se coçar e agir.
Sem democracia digital e sem as redes inundadas de manifestações antirracistas seria impossível pressionar a Espanha e a própria La Liga para que se posicionassem diante de um problema cotidiano. As redes não precisam ser controladas, elas podem ter – e têm – um papel positivo, propositivo. O que controlará as redes é a educação dos seus usuários, o discernimento.
Isto jamais poderia acontecer em Cuba ou na China, onde a internet é controlada com mão de ferro. Uma manifestação contra o racismo é antes de tudo um direito democrático, algo inegociável. Mas num país com cabresto na internet pode ser uma ameaça, um movimento político incontrolável. A garantia da liberdade na internet permite não apenas a denúncia, mas principalmente a mobilização de milhões e milhões de pessoas e o surgimento de causas.
Daí a importância de garantir o acesso cada vez maior das pessoas à internet e seus serviços. Durante a pandemia os brasileirinhos viveram o drama de serem divididos em 2 categorias de crianças: aquelas que tinham acesso à internet e continuaram estudando e aquelas que pararam de estudar porque não conseguiam acessar a internet. Estes 2 anos de ensino capenga para os mais pobres terá reflexos negativos em poucos anos, numa era na qual o conhecimento é a principal fonte de riqueza das nações.
No Brasil a democracia digital foi ferida pelas grandes empresas de telefonia, como Tim, Claro e Vivo – todas de capital estrangeiro – quando se negam garantir a estudantes pobres de Alagoas e do Amazonas acesso gratuito à rede. A repórter Paula Saldanha, da Folha de S. Paulo, apurou que as 3 irmãs da telefonia travam o acesso dos alunos pobres e professores aos programas de conectividade.
Isto é um abuso e uma forma de impedir o acesso da população mais vulnerável à democracia digital. Os prejuízos causados pela pandemia motivaram a criação de uma lei que garantisse R$ 3,5 bilhões para dar acesso à internet a 22 milhões de alunos pobres. É muita gente: equivale à população da Região Metropolitana de São Paulo. Estas crianças estão sendo surripiadas no seu direito ao conhecimento e às ferramentas de geração de riqueza das sociedades desenvolvidas. É uma vergonha.
O Brasil precisa de educação como o ser humano de água. No ano passado, uma reportagem do Fantástico contou a história de um menino que precisava subir numa árvore para conseguir estudar pela internet. Estes são os excluídos da educação e da democracia digital, todos ávidos por conhecimento, por saber.
Estas 3 irmãs da telefonia deveriam dar o exemplo e facilitar a vida de quem um dia, ao tornar-se pagador de impostos e consumidor, poderá usar os seus provedores para exercer seus direitos de cidadão. Mas a mesquinharia é grande e fica pior quando crianças não têm o direito fundamental de estudar. O país não precisava deste triste espetáculo.
A mesma força que mobilizou o governo brasileiro e nosso povo contra o ataque racista contra Vini Jr deveria ser usada para defender os direitos digitais das crianças pobres de Alagoas e do Amazonas. Esta é a grande causa de todos nós. Num mundo conectado, a pior coisa que se pode impor a um ser humano é o abandono, como se crianças pobres não tivessem direito à democracia digital. (Pblicado originalmente pelo Poder 360)
Democracia digital não é para pobre
Deixe um comentário