No domingo da manifestação por anistia na Avenida Paulista, duas coincidências. Foi em São Paulo que em abril de 1984 se realizou a maior demonstração de apoio pelas Diretas-já da emenda constitucional do Deputado Dante de Oliveira. A emenda não passou e Tancredo ainda foi eleito pelo Congresso Nacional, como os generais do período militar. Mas as diretas entraram na nova Constituição e, em 1989 os brasileiros elegeram o Presidente da República, com voto direto e apuração fiscalizada pelos partidos. A outra coincidência é o Evangelho do mesmo domingo, escrito por João, mostrando uma cena de anistia por parte de Jesus, de uma adúltera recém flagrada. Pela lei mosaica, ela deveria ser apedrejada; os fariseus provocaram Jesus, perguntando o que fazer com ela. Jesus respondeu: quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. Os circunstantes, então, foram sumindo. “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” – perguntou Jesus, que havia ficado sozinho com a mulher. “Ninguém, Senhor.”, ela respondeu. E Jesus: “Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar”.
O Ministro Barroso já disse que não dá para não punir, porque os insatisfeitos com resultado de eleição tornarão a pecar contra o patrimônio público e as instituições. Como na Lei Mosaica: olho por olho, dente por dente. Essa posição do Presidente do Supremo Tribunal ainda está no Velho Testamento; não entrou na era cristã, que recebeu um novo mandamento, que foi aplicado por Jesus à adúltera. Escribas e fariseus achavam que ela deveria ser apedrejada até a morte. Mas descobriam dentro de si que não tinham poder moral para atirar a primeira pedra. Se a apuração da eleição fosse bem entendida por cada eleitor, se houvesse um instrumento que garantisse para o eleitor que seu voto está computado certo; se havendo quase empate entre candidatos fosse possível fazer auditoria, como tentou o PSDB na reeleição de Dilma, não haveria a dúvida, a insatisfação, a catarse. A ameaça da Lei de Moisés não baniu o adultério; a punição exagerada de manifestantes do 8 de janeiro não vai tirar as dúvidas sobre o sistema eleitoral.
Na Câmara, onde começou a emenda Dante de Oliveira pelas diretas, agora o Presidente Hugo Mota, depois de ter afirmado que o 8 de Janeiro não teve golpe, comete uma contradição afirmando que há assuntos mais urgentes que o projeto de anistia. É como se dissesse que não se importa com as pedras atiradas em punição; pessoas nos presídios, sem antecedentes criminais, que cometeram o crime de vir para Brasília se manifestar contra um resultado que não conseguiram compreender de uma eleição, estão há dois anos apartadas de suas famílias, de suas atividades, com a liberdade retirada. Foram degredadas ao grau de miseráveis, para as quais o projeto de anistia é a misericórdia.
O projeto de emenda constitucional diretas-já de 41 anos atrás foi “apedrejado” no Congresso mas não adiantou. A insistência da força popular, a necessidade de cada cidadão decidir quem deve ser presidente, governador, prefeito ou representante, foi mais forte. Não adiantou a tentativa de tutelar o eleitor, será que agora vai adiantar intimidar o brasileiro ou censurar as redes que deram voz a cada indivíduo origem do poder? A decisiva atualidade do Evangelho de domingo é que hoje os que já tiveram pecado – e foram perdoados pela anistia de 1979 – são os que estão atirando a primeira pedra quando gritam: sem anistia! Não é isso farisaísmo?
FARISAÍSMO

Jornalista com décadas de atuação na TV e rádio, como apresentador, repórter, comentarista e diretor de jornalismo.