O Brasil contemporâneo assiste a um fenômeno revelador de suas fissuras culturais mais profundas: a ascensão de um nacionalismo que se constrói, paradoxalmente, sobre a negação do próprio país. Trata-se de um sentimento patriótico que não se enraíza na vivência concreta do povo, mas que se ancora em símbolos performáticos, gestos espetaculares e um desejo latente de pertencimento a outra nação. Trata-se de uma verdadeira esquizofrenia patriótica. Como nos alertou Tolstói em Guerra e Paz, as classes dominantes, quando atravessadas por crises de identidade, revelam sua tendência à alienação cultural. A aristocracia russa, encantada com a França, precisou da guerra para reconhecer a si mesma. O Brasil, no entanto, parece viver uma alienação sem catástrofe redentora: a recusa do Brasil real em nome de uma idealização estrangeira — no caso, os Estados Unidos.
É preciso compreender esse fenômeno à luz do processo histórico de formação das elites brasileiras. Desde o período colonial, instaurou-se entre nós uma lógica de negação do elemento nacional, substituído pelo prestígio do que vem de fora. O novo patriota de hoje veste verde e amarelo, mas sonha enrolado no vergonhoso lençol com as cores das bandeiras de Israel e Estados Unidos. O Brasil, para ele, é símbolo, não substância. É marca, não matéria. A cultura nacional é objeto de escárnio, o idioma é deformado pela ânsia de parecer globalizado, e o povo é visto como obstáculo — e não sujeito — da história. Estamos diante de uma forma de nacionalismo de fachada, que enverga a bandeira, mas a despe de um pertencimento autêntico que nega a atitude ou a revela corrompida.
Esse descompasso revela algo mais grave: o esvaziamento do sentido de coletividade. Como nos ensinou Antônio Cândido, a literatura e a cultura não são apenas expressões de identidade, mas também instrumentos de coesão social. O nacionalismo que se estrutura sobre o ódio ao país real, sobre o desprezo ao povo e à sua cultura, é um instrumento de ruptura simbólica, não de unidade. Ao endeusar os valores e modos de vida estrangeiros, esse discurso mina a possibilidade de um projeto nacional verdadeiramente emancipador. É um patriotismo que se faz contra o Brasil, não por ele; que rejeita a complexidade da vida nacional para adotar um modelo externo, idealizado e inalcançável.
Tolstói nos mostra que a identidade não se afirma no conforto, mas na crise, na digladiação. O reencontro da elite russa com seu povo nasce do embate com o outro. Aqui, a elite se recusa ao embate e se posta numa submissão covarde. Diante das contradições sociais, prefere a fuga simbólica: o exílio voluntário em um imaginário norte-americano. A brasilidade, assim, torna-se uma indumentária para ocasiões específicas — jogos de futebol, manifestações políticas, datas cívicas — mas não um conteúdo vivido, compartilhado, transformador. Amar o Brasil, portanto, não é apenas reproduzir símbolos, mas assumir o compromisso ético com sua realidade e com seu povo. E isso exige, como diria Cândido, a coragem de viver a literatura do país: sua língua, sua dor, sua esperança. É nesse ponto que a verdadeira identidade se funda — não na performance, mas na pertença que eviscera o verdadeiro patriotismo.
O nacionalismo às avessas: a esquizofrenia patriótica da extrema-direita
