Em um feito digno de ficção científica (mas que é pura realidade), cientistas acabaram de realizar o que muitos consideravam impossível. Uma equipe global de mais de 150 pesquisadores conseguiu mapear o funcionamento e as conexões de um pedaço do cérebro do tamanho de um grão de areia, criando o maior e mais detalhado diagrama neural da história.
O Projeto MICrONS (Machine Intelligence from Cortical Networks) acaba de transformar aquilo que o renomado biólogo molecular Francis Crick declarou em 1979 como “impossível” em uma realidade palpável. Crick havia dito que seria inviável “criar um diagrama exato de conexões para um milímetro cúbico de tecido cerebral e a forma como todos seus neurônios disparam”. Bem, parece que o impossível tem prazo de validade.
Imagine só: dentro daquele minúsculo fragmento de tecido cerebral existe uma arquitetura tão complexa quanto uma floresta exuberante. E não estamos falando de qualquer coisa. Este mapa contém mais de 200.000 células, quatro quilômetros de axônios (aqueles bracinhos que as células nervosas estendem para se comunicar) e impressionantes 523 milhões de sinapses (os pontos de conexão entre células).
Para colocar em perspectiva, os dados coletados ocupam 1,6 petabytes – o equivalente a 22 anos ininterruptos de vídeo em alta definição. É como se você começasse a assistir a uma série hoje e só terminasse em 2047, sem pausas para dormir, comer ou ir ao banheiro. Seria a maratona definitiva de Netflix, só que de células cerebrais.
O processo para criar esse mapa não foi menos impressionante. Primeiro, cientistas da Baylor College of Medicine usaram microscópios especializados para registrar a atividade cerebral de um milímetro cúbico do córtex visual de um camundongo enquanto o pequeno roedor assistia a vários filmes e clipes do YouTube. (Sim, aparentemente camundongos de laboratório têm uma vida cultural mais rica do que muitos de nós.)
Depois disso, pesquisadores do Instituto Allen pegaram esse mesmo pedacinho de cérebro e o fatiaram em mais de 25.000 camadas, cada uma com 1/400 da espessura de um fio de cabelo humano. Para visualizar: se você empilhasse 400 dessas fatias, elas teriam a espessura de um único fio do seu cabelo. Então usaram uma bateria de microscópios eletrônicos para fotografar cada fatia em alta resolução.
Por fim, uma equipe da Universidade de Princeton utilizou inteligência artificial e aprendizado de máquina para reconstruir as células e conexões em um volume tridimensional. É como se tivessem montado um quebra-cabeça em 3D com 25.000 peças microscópicas, só que muito mais complexo.
“Este é um momento divisor de águas para a neurociência, comparável ao Projeto Genoma Humano em seu potencial transformador”, disse David A. Markowitz, ex-gerente de programa da IARPA que coordenou esse trabalho. É um projeto ambicioso que quebrou barreiras tecnológicas anteriormente consideradas intransponíveis.
Surpresas no Microcosmo Neural
Entre as descobertas mais surpreendentes está uma nova compreensão sobre como funcionam as células inibitórias no cérebro. Anteriormente, os cientistas pensavam nessas células – aquelas que suprimem a atividade neural – como uma força simples que apenas amortecia a ação de outras células. Seria como imaginar que em uma festa barulhenta, elas seriam simplesmente os seguranças que pedem a todos para baixar o volume.
Mas não. Os pesquisadores descobriram um nível muito mais sofisticado de comunicação: as células inibitórias não agem aleatoriamente; pelo contrário, são altamente seletivas sobre quais células excitatórias escolhem como alvo. É como se os seguranças da festa não pedissem silêncio a todos indiscriminadamente, mas selecionassem especificamente quais conversas deveriam ser moderadas e quais poderiam continuar animadas.
Algumas células inibitórias trabalham em conjunto, suprimindo múltiplas células excitatórias, como uma equipe coordenada, enquanto outras são mais precisas, mirando apenas em tipos específicos. É um intrincado sistema de coordenação e cooperação em nível de rede neural que ninguém havia observado com tal detalhe antes.
“Dentro daquela minúscula partícula existe toda uma arquitetura como uma floresta requintada”, explicou Clay Reid, investigador sênior e um dos fundadores da conectômica por microscopia eletrônica, que trouxe esta área da ciência para o Instituto Allen há 13 anos. “Ela tem todos os tipos de regras de conexões que conhecíamos de várias partes da neurociência e, dentro da própria reconstrução, podemos testar as antigas teorias e esperar encontrar coisas novas que ninguém jamais viu antes.”
Uma Nova Era para a Medicina e a Ciência
Entender a forma e a função do cérebro e poder analisar as conexões detalhadas entre neurônios em uma escala sem precedentes abre novas possibilidades para o estudo do cérebro e da inteligência. Também tem implicações para transtornos como Alzheimer, Parkinson, autismo e esquizofrenia, que envolvem interrupções na comunicação neural.
“Se você tem um rádio quebrado e possui o diagrama do circuito, estará em melhor posição para consertá-lo”, comentou Nuno da Costa, investigador associado do Instituto Allen. “Estamos descrevendo uma espécie de Google Maps ou planta deste grão de areia. No futuro, podemos usar isso para comparar a fiação cerebral em um camundongo saudável com a fiação cerebral em um modelo de doença.”
É como se finalmente tivéssemos o manual de instruções – ou pelo menos as primeiras páginas dele – para a máquina mais complexa do universo.
Uma Colaboração Global
O Projeto MICrONS é um esforço colaborativo de mais de 150 cientistas e pesquisadores do Instituto Allen, Princeton, Harvard, Baylor College of Medicine, Stanford e muitas outras instituições.
“Fazer esse tipo de ciência em grande escala, em equipe, requer muita cooperação”, disse Forrest Collman, diretor associado de dados e tecnologia do Instituto Allen. “Requer que as pessoas sonhem grande e concordem em enfrentar problemas que não são obviamente solucionáveis, e é assim que os avanços acontecem.”
O esforço colaborativo global foi possibilitado pelo apoio da Intelligence Advanced Research Projects Activity (IARPA) e da Iniciativa BRAIN®️ (Brain Research Through Advancing Innovative Neurotechnologies®️) dos Institutos Nacionais de Saúde.
“A Iniciativa BRAIN desempenha um papel crítico na reunião de cientistas de várias disciplinas para realizar pesquisas complexas e desafiadoras que não podem ser alcançadas isoladamente”, disse John Ngai, diretor da Iniciativa BRAIN®️. “Blocos básicos da ciência, como a forma como o cérebro é conectado, são a base de que precisamos para entender melhor lesões e doenças cerebrais, para aproximar tratamentos e curas do uso clínico.”
Do Impossível ao Possível
Um mapa da conectividade neuronal, forma e função de uma porção do cérebro do tamanho de um grão de areia não é apenas uma maravilha científica, mas um passo em direção à compreensão das origens elusivas do pensamento, da emoção e da consciência. A tarefa “impossível” vislumbrada por Francis Crick em 1979 está agora um passo mais próxima da realidade.
Andreas Tolias, um dos cientistas principais que trabalhou neste projeto tanto na Baylor College of Medicine quanto na Universidade de Stanford, declarou: “Este é o futuro em muitos aspectos. O MICrONS permanecerá como um marco onde construímos modelos fundamentais do cérebro que abrangem muitos níveis de análise, desde o nível comportamental até o nível representacional da atividade neural e até mesmo ao nível molecular.”
Este avanço monumental nos coloca no limiar de uma nova era de entendimento neural. Quem sabe o que poderemos descobrir ao mapear porções cada vez maiores do cérebro? Talvez em breve possamos finalmente compreender por que sempre esquecemos o nome de alguém segundos depois de sermos apresentados, ou por que insistimos em checar o refrigerador repetidamente, esperando que algo novo tenha magicamente aparecido desde a última vez que olhamos.
O Desafio Técnico Extraordinário
Para apreciar verdadeiramente a magnitude desta conquista, considere isto: cada uma das mais de 25.000 fatias do tecido cerebral teve que ser cuidadosamente fotografada, processada e alinhada com precisão microscópica. Um erro de alinhamento de poucos nanômetros poderia distorcer completamente a reconstrução 3D final.
O processamento de dados exigiu um poder computacional massivo. Para contextualizar, quando os cientistas começaram a planejar este projeto, a capacidade computacional necessária para processar tudo nem mesmo existia. Foi preciso desenvolver novos algoritmos e sistemas de armazenamento apenas para lidar com o volume astronômico de informações.
A equipe enfrentou um desafio semelhante ao de mapear cada árvore, arbusto, flor e grama em uma floresta tropical densa, só que em uma escala bilhões de vezes menor. E não apenas mapeando onde estão, mas também como se comunicam entre si.
“Pense nisso como se estivéssemos tentando mapear cada conversa sussurrada em uma cidade inteira, identificando quem está falando com quem, sobre o quê, e como essas conversas influenciam o comportamento de cada pessoa”, explica um dos pesquisadores que preferiu não ser identificado para evitar que seus colegas descobrissem sua tendência a criar metáforas exageradas.
Um Cérebro de Camundongo e Seus Gostos Cinematográficos
Um aspecto particularmente fascinante (e ligeiramente cômico) do estudo é que os cientistas registraram a atividade cerebral do camundongo enquanto ele assistia a vários vídeos, incluindo clipes do YouTube. Isso levanta a questão inevitável: que tipo de conteúdo um camundongo de laboratório prefere assistir?
Embora o estudo não detalhe especificamente as preferências cinematográficas do roedor, gostamos de imaginar que talvez ele tenha desfrutado de documentários sobre queijo, tutoriais de como escapar de armadilhas ou talvez até vídeos ASMR de gatos ronronando a uma distância segura.
O que sabemos com certeza é que essas sessões de “Netflix para roedores” proporcionaram dados valiosos sobre como o cérebro processa informações visuais. Os padrões de ativação neuronal revelaram como diferentes grupos de células trabalham juntos para interpretar imagens em movimento – um processo fundamental não apenas para camundongos, mas também para humanos.
Desmistificando o Grão de Areia Cerebral
Para muitos de nós, a ideia de que um mero milímetro cúbico de tecido cerebral possa conter tanta complexidade é quase incompreensível. Para colocar isso em perspectiva:
• Os 4 quilômetros de axônios encontrados nessa pequena amostra, se esticados em linha reta, atravessariam uma cidade pequena.
• As 523 milhões de sinapses representam aproximadamente 70 conexões para cada ser humano na Terra.
• Cada neurônio pode se conectar a milhares de outros, criando uma rede de comunicação que faz a internet parecer simplória em comparação.
O cérebro humano contém aproximadamente 86 bilhões de neurônios. O pedaço estudado representa apenas uma fração minúscula do cérebro de um camundongo, que por sua vez é muito menor que o cérebro humano. Se extrapolarmos os dados, a complexidade total de um cérebro humano é tão vasta que desafia qualquer tentativa de quantificação significativa.
“É como se tivéssemos mapeado um quarteirão de uma megalópole e descoberto que esse quarteirão já contém mais ruas, edifícios e conexões do que pensávamos existir em toda a cidade”, comentou um pesquisador, ajustando seus óculos após passar 14 horas ininterruptas analisando dados.
As Implicações Filosóficas
Além das óbvias aplicações médicas e científicas, este projeto levanta questões filosóficas profundas sobre a natureza da consciência, da identidade e do livre-arbítrio.
Se um espaço tão pequeno quanto um grão de areia no cérebro já abriga uma complexidade tão estonteante, o que isso nos diz sobre a totalidade de nossa experiência consciente? Serão nossos pensamentos, memórias e personalidades apenas o resultado emergente de bilhões dessas intrincadas conexões funcionando em harmonia?
Como coloca um neurocientista filosófico não identificado: “Olhando para essa complexidade, fico imaginando se nosso senso de self é apenas uma ilusão criada por trilhões de minúsculas sinapses disparando em padrões específicos. E então me pergunto se essa questão em si é apenas outro padrão de disparo em meu próprio cérebro, criando uma espécie de recursão infinita de questionamento existencial.”
Questões à parte, o que sabemos com certeza é que esse avanço nos coloca mais perto de entender o que nos torna humanos – como pensamos, como lembramos, como amamos, como criamos. E talvez, em última análise, como podemos curar quando essas funções dão errado.
Uma Jornada Ao Cérebro: De Grão de Areia a Mapa da Inteligência

Epidemiologista e Professor Doutor em Engenharia Biomédica