Em 1850, houve a edição da Lei de Terras (Lei n.º 601 de 18 de setembro de 1850), considerada como uma legislação inovadora no âmbito do direito agrário brasileiro. Uma de suas particularidades faz referência à “compra” como a única forma de acesso à terra, o que inviabilizou os “sistemas de posse ou doação”, anteriormente utilizados pelas Capitanias Hereditárias e pelas Sesmarias. Assim, todos os que já estavam produzindo na terra recebiam o título de proprietário. Por outro lado, as terras que ainda não eram ocupadas e não cumpriam a função social passavam a ser propriedade do Estado, principalmente para combater especulação imobiliária, muito comum até hoje na Amazônia Legal.
Após anos, em 1964, foi criado o Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504, de 30 de novembro de 1964), que é a forma como se encontra disciplinado o uso, ocupação e demais relações fundiárias no Brasil. De acordo com o referido Estatuto, o Estado passou a ter obrigação de garantir o direito de acesso à terra para quem nela vive e trabalha e cumpre a função social da propriedade.
A Constituição Federal também possui grande relevância para a matéria. Ações de reforma agrária foram legitimadas e, com o objetivo de harmonizar os interesses envolvidos, foi garantido o direito de propriedade, a obrigatoriedade do cumprimento da função social e também foi prevista a vedação de penhora para pagamento de débitos decorrentes das atividades produtivas da pequena propriedade rural.
A Lei n.º 4.504, de 1964, garantiu a propriedade familiar, e a definiu como o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração e, eventualmente, trabalho com a ajuda de terceiros.
Mais tarde surgem normas importantes para tratar da regularização das terras da União na Amazônia Legal, como: i) a Lei n.º 11.952, de 25 de junho de 2009 que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal; altera as Leis nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, e a 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências; ii) Decreto n.º 10.592, de 24 de dezembro de 2020 que regulamenta a Lei n.º 11.952, de 25 de junho de 2009, para dispor sobre a regularização fundiária das áreas rurais situadas em terras da União, no âmbito da Amazônia Legal, e em terras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, por meio de alienação e concessão de direito real de uso de imóveis; iii) Instrução Normativa n.º 104, de 29 de janeiro de 2021 que Fixa os procedimentos para regularização fundiária das ocupações incidentes em áreas rurais, de que trata a Lei n.º 11.952, de 25 de junho de 2009, regulamentada pelo Decreto n.º 10.592, de 24 de dezembro de 2020, e dá outras providências; Lei n. 14004, de 2020, que trata da transferências de terra da União para os Estados de Roraima e Amapá.
Foi importante fazer essa digressão de normas para demonstrar que apesar de estarmos terminando o ano de 2021, “NÃO” avançou a Regularização Fundiária na Amazônia Legal. Pelo contrário, o processo de Regularização Fundiária Rural, continua com a mesma letargia e vícios que apesar da existência de diversos órgãos na União, nos Estados, e órgãos de controle social, a celeuma jurídica é a mesma, em que sempre há novas legislações alterando marcos regulatórios pelo Congresso Nacional e as estruturas organizacionais dos órgãos de terras, sem representar avanço na Regularização Fundiária Rural, que culmina com “calote fundiário” das posses, ocupações e até de propriedade, beneficiando os poderosos locais e as negociações com empresas internacionais, seja com título de terras ou cessão para explorar as florestas e os minerais. Desta forma, para melhor entendimento do papel de cada instituição pública de terra, descreveremos suas finalidade institucionais:
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) é uma Autarquia federal responsável pela realização do ordenamento fundiário nacional. Isso inclui, por exemplo, a execução da Reforma Agrária e da Regularização Fundiária em terras públicas federais. Além disso, o INCRA é também responsável pela discriminação e destinação das terras devolutas federais, pelo cadastro dos imóveis públicos e privados no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e pela certificação do georreferenciamento de imóveis por meio do Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF). É um órgão politizado, entregue nas mãos de políticos locais e nacionais, que direcionam as ações, que tem uma burocracia imensa principalmente para reconhecimento das posses, das ocupações, tudo de forma proposital.
A Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU) é um órgão federal atualmente vinculado ao Ministério da Economia responsável pela gestão do patrimônio da União, considerando a incorporação e a regularização, o controle, a fiscalização e a destinação de terras públicas, inclusive pelo repasse de tais terras ao INCRA para a implementação das políticas públicas fundiárias. Seu papel principal é em ambientes úmidos na Amazônia Legal em biomas de várzeas e de terrenos de marinha.
O Serviço Florestal Brasileiro (SFB) é um órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) responsável pela gestão das florestas públicas, assim como pela coordenação da implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Nesse objetivo, o SFB proporciona orientações aos órgãos ambientais para a análise das informações inseridas e para a integração dos dados no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR). Esse órgão nas concessões florestais das FLONAS e nas concessões de PAOF para as FLOTAS, tem falhado muito, principalmente no reconhecimento das ocupações e posses, e mesmo de propriedade, visto que não realiza conjuntamente com os Estados de forma proposital o Cadastro Ocupacional e o Laudo Antropologico antes de implantar esses modelos de unidades, exclusivamente com intenção mercantilistas para destinar as concessões floretais onerosas para empresas internacionais, referindo de morte os preceitos establecidos pela lei do SNUC e pela lei de concessão florestal.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) é uma Autarquia federal responsável pela autorização do uso de recursos naturais, assim como pela fiscalização, pelo monitoramento pelo controle ambiental, e pela educação ambiental. Na Amazônia Legal desde 2006 que esse órgão não realiza mas o licenciamento ambiental em terras da União, visto que essa competência foi delegada aos órgãos ambientais dos Estados por meio de um Acordo de Cooperação Técnica, e que vem ocorrendo diversos processos de judicialização e criminalização promovido pelo Ministério ùblico Federal que não reconhece esse Termo de Cooperação Técnica em que todos os processos judiciais são decididos na justiça federal, causando insegurança jurídica e morosidade no processo de concessão de licenças ambientais. Esse Termo de Cooperação Técnica que vigora desde 2006, deveria ser extinto para que o IBAMA retornasse a realizar os procedimentos administrativos em terras da União, já que não teria judicialização quanto a competência material dos Estados, o que viabilizaria em tese as concessões de licenças ambientais sem interferência do Ministério Público Federal.
A Receita Federal é o órgão responsável pela arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR) e pela gestão do Cadastro de Imóveis Rurais (CAFIR) estabelecido para o cálculo desse imposto e a determinação do valor da terra.
Os Institutos Estaduais das Terras são os órgãos estaduais responsáveis pela gestão das terras públicas estaduais. Entre outras atribuições, os Institutos Estaduais das Terras realizam a arrecadação e a destinação de terras públicas estaduais, inclusive por meio de programas de regularização fundiária estaduais. Na Amazônia Legal há existência de terras devolutas da União não arrecadas que estão nos territórios desses Estados. Em alguns Estados esse processo de transferências de terras ainda está ocorrendo, fato que tem levado insegurança juridica e processos de judicialização e criminalização, em que o escopo sempre é da incompetência desses Estados de realização regularização fundiária e de conceder licenças ambientais.
A instituições Estaduais de Meio Ambiente são os órgãos responsáveis pela gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR), o que inclui a inscrição dos imóveis no cadastro, bem como a análise e a regularização ambiental dos mesmos. Há muitos conflitos dentro desses órgãos pela exigência de provas fundiárias para deliberar sobre as diversas concessões e licenças ambientais em terras da União, visto que o IBAMA não realiza, mas o licenciamento ambiental em terras da União que foi outorgado aos Estados da Amazônia Legal e o MPF não reconhece essa delegação de competência, fato que tem agravado as diversas concessões e são causas de insegurança jurídica.
Os Tabelionatos (Cartórios) de Notas são entidades privadas que, por delegação do poder público, têm por atribuição o registro dos títulos translativos de propriedade, como escrituras públicas, e demais atos registrais, conforme a Lei de Registros Públicos (abertura de matrícula, desmembramento e remembramento de imóveis, hipotecas, entre outros), bem como a manutenção dos Registros de Imóveis.
As Corregedorias Gerais de Justiça (CGJ) dos Tribunais de Justiça dos Estados que são Órgãos dos Tribunais de Justiça dos estados responsáveis pela fiscalização e pelas correições dos atos dos Tabelionatos de Notas e dos Cartórios de Registro de Imóveis.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Corregedoria Nacional de Justiça, é responsável pela orientação, pela coordenação e pela execução da regulamentação dos serviços cartoriais e de registro. Além disso, o CNJ tem por atribuição a orientação, a padronização e o aprimoramento da fiscalização dos registros efetuada pelos Tribunais por meio das Corregedorias Gerais de Justiça.
A esse quadro institucional bastante complexo, é necessário ainda adicionar os órgãos responsáveis pelo estabelecimento e pela gestão de terras destinadas a usos específicos, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que é responsável pelas Terras Indígenas; o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que é responsável pelas Unidades de Conservação federais; os órgãos ambientais estaduais que tem a gerência das Unidades de Conservação estaduais, inclusive de realizar concessões florestais nas Florestas Estaduais; a Fundação Cultural Palmares, responsáveis pela gestão de Territórios Quilombolas, entre outros. Além disso, é preciso mencionar também o papel dos governos estaduais e federal no estabelecimento de Unidades de Conservação e no reconhecimento de Terras Indígenas e Territórios Quilombolas, bem como o do Poder Legislativo, que, além de legislar no tema, tem a prerrogativa exclusiva de autorizar a alienação (venda a particulares) de terras públicas superiores a 2500 hectares (ha).
Verifica-se que há toda uma estrutura hierárquica e administrativa para celerizar os processos de regularização fundiária e de deliberar sobre processos administrativos e judiciais, entretanto, tanto no aspecto administrativo quanto judicial é um processo demorado e lento, para desenvolver uma gestão efetiva da ocupação do território e do uso das terras, que abrem espaços para a ocorrência da grilagem de terras por meio de fraudes e práticas corruptas.
A principal dificuldade para quem busca um órgão de terra e o registro de imóveis, esbarra na dificuldade de provar a origem legal de uma propriedade privada, em que é necessário demostrar como o imóvel foi alienado regularmente do patrimônio público. Além disso, é necessário comprovar o vínculo entre o título atual e esse ato originário por meio do conjunto de atos registrais que formam a cadeia dominial, ou seja, a cadeia de transmissão de um imóvel desde seu desmembramento do patrimônio público até o presente momento, fato que dificulta quando os órgãos de terras no pais são desprovidos de capital humano e de tecnologia, e por sua vez, os Registros de Imóveis têm deficiências que fragilizam a segurança jurídica dos direitos de propriedade, sem olvidar que tanto os órgãos de terras quanto dos cartórios de registros de imóveis não possuem um sistema integrado.
Ainda, as terras públicas não destinadas a um uso específico (regularização fundiária, reforma agrária, Unidade de Conservação, Terras Indígenas, entre outros) permanecem relativamente vulneráveis à grilagem de terras e ao desmatamento. Isso ocorre porque a não destinação das terras públicas dilui as responsabilidades dos órgãos públicos para proteger tais áreas de invasões.
Por esses motivos, faz-se necessário, em primeiro lugar, avançar na “discriminação” das terras devolutas para se identificar e destinar os remanescentes de terras estatais e reforçar o conhecimento e o controle do Estado sobre a ocupação do território, através do cadastro de terras.
Por fim, é também necessário avançar na regularização fundiária das ocupações incidentes em terras públicas para se garantir a segurança jurídica necessária, como, por exemplo, a proteção dos direitos dos posseiros e das comunidades tradicionais e de terras indígenas em face das ações predatórias de grileiros. Porém, isso depende da definição clara e objetiva de critérios para a regularização fundiária, da estabilidade do marco jurídico e dos recursos dos órgãos responsáveis por implementar essa política fundiária