De tempos em tempos somos surpreendidos por coisas difíceis de ser compreendidas, digeridas e esquecidas. Nesses dias, tivemos transplantados contaminados por HIV e a população de São Paulo às escuras. Assemelham-se por ser fruto do descuido e do descaso.
Noticia-se que o Ministério da Saúde vai endurecer a normatização que regula os transplantes. Isso permite a interpretação de que as vigentes regras não foram suficientes para evitar o ocorrido, circunstância que atrai a responsabilidade para a União e o gerenciamento do sistema de saúde. Novamente algo vai ser feito após tragédia que diretamente atingiu pacientes e suas famílias, no Rio de Janeiro, em contexto que expõe toda a sociedade.
O outro tema envolve milhões de pessoas às escuras, por dias e noites seguidas, após fortes chuvas que se abateram sobre São Paulo. Como a chuva é evento natural e previsível, não ocorreu como algo fortuito a surpreender a continuada prestação do serviço pela empresa responsável. A atividade não inclui somente a cobrança do preço correspondente ao consumo mas, também, a satisfatória manutenção da rede e o fornecimento de equipes de serviço de emergência para os – insistimos: previsíveis – defeitos na prestação da atividade, inclusive em decorrência de eventos climáticos.
A propósito, merece menção trecho de pronunciamento do Ministro da Pasta: “Faltou planejamento e beirou a burrice. Ela [a Enel SP] acha que ampliar e modernizar para diminuir gente, sem se preocupar com a questão urbanística – que está muito aquém do necessário na capital paulista e em alguns municípios da região metropolitana –, ia resolver o problema”, disse.” (Eixos.com.br, 14.10.2024). Resta saber se a concessão será revista, pois muito se tem falado a respeito. Se a revisão da concessão for a punição determinada, talvez corresponda à surpreendente aplicação de medida de controle da tutela das concessionárias de serviço público e o exemplo punitivo decerto será considerado por outras empresas desse e de outros setores. No entanto, se nada de tal porte for feito, o recado será de que certas regras são “para inglês ver”.
Estamos numa encruzilhada, de um lado, com históricos significativos poucos investimentos nos serviços públicos essenciais por parte do poder público, enquanto, do outro, temos uma opção por “privatizar” parcela significativa de atividades fundamentais, que carecem de desejável efetivo poder de polícia do governo federal e das agência reguladoras sobre as atividades delegatárias. O cruzamento de tais contextos é potencialmente cheio de riscos e demandas. Se pender demais para um ou outro lado, os consumidores acabam sendo onerados por pagar o preço sem ter a reciprocidade efetiva da prestação do compromisso à altura da sua necessidade. Detalhe importante para esse debate é que os Estados Unidos da América, país altamente liberal, mantém sob administração do governo o sistema hidrelétrico, em grande parte afetando as grandes usinas e instalações às forças armadas outros órgãos públicos, por considerar a produção de energia elétrica essencial do ponto de vista estratégico. Ainda a propósito, França, Alemanha e Reino Unido reestatizaram serviços de água e esgoto. As implicações são imensas e por isso o debate não é simples.
No caso de São Paulo, a falha no fornecimento de energia elétrica e por tanto tempo causa prejuízos incalculáveis à ordenação da cidade (por mau funcionamento dos semáforos, etc), às famílias e à indústria e o comércio. Imensa cadeia produtiva é atingida, com vendas não realizadas, restaurantes e bares vazios, produtos perecíveis perdendo a validade e toda sorte de transtornos e prejuízos. No caso da contaminação nos transplantes, a esperança de que os procedimentos proporcionariam vida saudável foi abatida pela contaminação por HIV. Qualquer crítica a isso é pequena diante do potencial dano à sociedade e, particularmente, a cada um dos pacientes e suas famílias. Indignação geral.
Nesse plano, as duas situações fáticas acima retratadas ficam em situação assemelhada, nessa encruzilhada que consideramos – e a questão é razoavelmente complexa. De fato, temos 3 Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – e a função normativa de órgãos de controle e agências reguladoras que não se encaixa puramente nesse modelo de tripartição de poderes.
De toda sorte, não é confortável que a solução desses dois casos tenham de ocorrer no Poder Judiciário, a uma por se sobrecarregar os tribunais com enxurrada de ações indenizatórias e afins, mesmo que haja ação de caráter coletivo, a duas, por ser modelo passível de autocontrole pela gestão executiva, com base nos princípios da Autotutela e de Tutela, naturais e inerentes ao Direito Administrativo que normatiza o setor público e quem o representar e, por último, por ser mais barato o controle prévio.
O Direito Administrativo é voltado ao atuar administrativo que não é imune ao controle social ou judicial, estando longe a época em que o governante se confundia com o Estado e dizia, como o absolutista Rei Luis XIV, de França, que o Estado era ele (“L’État, c’est moi”). Apenas para esclarecer, o regime absolutista tinha como característica o “poder absoluto” nas mãos do governante real, que não devia satisfação a quem quer que fosse.
De modo bem distinto, no regime republicano e sob o sistema democrático, não há lugar para algo parecido e a responsabilidade faz parte do contexto natural da própria organização da Nação, na forma dos princípio e regramentos constitucionais e legais. Importa destacar que a Constituição Federal de 1988 elegeu a responsabilidade objetiva para cuidar desses casos: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (CF, art 37, § 6º).
Além disso, para ficar clara a dimensão do tema sob análise, estabelece a Constituição Federal os 5 princípios gerais que regem a atuação da Administração Pública: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (CF, art. 37, caput). Ora, essa eficiência constitucionalmente prevista cobra a permanente e continuada melhoria na qualidade da atuação. Isso envolve técnicas e ideias e o seu aprimoramento, alvitrando a otimização constante dos serviços públicos e o melhor atendimento possível aos destinatários, usuários e cidadãos.
Para isso, o planejamento e o controle preventivo integram o contexto, tanto quanto a execução. E, é importante lembrar, como se trata de Direito Administrativo, os motivos determinantes para as decisões integram o ato decisório e de execução, pela incidência da Teoria dos Motivos Determinantes. Portanto, tudo o que contrarie esse ideário é passível de depor contra as práticas administrativas que comprometam a segurança, o atendimento das necessidades e a proteção do cidadão. O serviço público, ademais, deve ser contínuo e sem interrupções, exatamente por ocorrer em razão do cidadão, destinatário final da sua atuação que, aliás, é a razão de ser da sua existência.
Quando percebemos que nos perdemos nos labirintos dos fatos e argumentos, significa que estamos como os gigantes ciclopes da mitologia, fabricantes de raios para Zeus e que, embora fortes e poderosos, não enxergavam além do que lhes cabia fazer, enquanto transpiravam nos fornos onde trabalhavam os seus talentos. Somos o povo talentoso e nascido em berço esplêndido, embora perdido em labirintos, entre discursos e utopias, sofrendo com desmandos e situações incompreensíveis e inexplicáveis, talvez por assumir dos ciclopes a sua visão de um olho só e com requintes de miopia.
Vemos de modo parcial e torto o que nos assombra, não valorizando claramente os nossos direitos e parecendo que não somos incentivados a lutar. O “deixa disso” acaba influenciando, o jeitinho brasileiro estrutura soluções paliativas, enquanto ocasionais escândalos se sucedem. Com isso, o apenas “bom” continua sendo inimigo do “ótimo” idealizado e a gente só “vai levando”… – como, aliás, fala a bela e já clássica canção brasileira, que diz que não temos cura.
Também há outros exemplos, como o notório caso do mutirão de cataratas que gerou danos a pacientes. Em última análise, são reflexos do sucateamento do sistema, que também gera as filas e a necessidade dos mutirões. Aliás, o sucateamento, como modelo, não fica imune a falhas e problemas. A verdade é que a privatização de setores essenciais não foi a solução mágica para tudo, até porque em muitos casos continua havendo forte participação dos recursos públicos. Culpar a ponta e os que “apertaram botões” é absolver os que tem o mando e que contribuíram para o desmonte de estruturas públicas que outrora foram sólidas e que ainda revelaram robustez bastante para segurar o atendimento aos brasileiros durante a Pandemia, gerando a máxima “viva o Sus”. O pior cego é o que não vê.
PERDIDOS NOS LABIRINTOS, COMO CICLOPES MÍOPES.
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