Este artigo analisa a formação histórica da estrutura fundiária brasileira, desde o período colonial até os dias atuais, argumentando que a extinção do sistema sesmarial não representou uma ruptura com o modelo de concentração de terras. Pelo contrário, sucessivos marcos legais, da Lei de Terras de 1850 às normativas do século XXI, perpetuaram uma lógica de exclusão que marginaliza comunidades tradicionais, negando-lhes o direito fundamental à titulação de seus territórios.
A formação do território brasileiro foi, desde suas origens, pautada por um projeto de exploração econômica que tinha a terra como seu principal ativo e instrumento de dominação. Os sistemas de Capitanias Hereditárias (a partir de 1534) e de Sesmarias (1530-1822) estabeleceram os alicerces de uma estrutura fundiária profundamente concentrada e excludente. As sesmarias, em particular, ao serem concedidas a um seleto grupo de indivíduos “de confiança” da Coroa, consolidaram o latifúndio como unidade produtiva base, frequentemente improdutivo e dependente da mão de obra escrava. Este modelo não apenas organizou o espaço geográfico, mas também moldou relações sociais de poder que perduram, onde a terra é símbolo de status e influência, e seu acesso é negado à grande maioria da população trabalhadora do campo.
A independência do Brasil em 1822 e a consequente extinção do regime sesmarial poderiam ter sido um momento de virada. No entanto, a ausência de uma legislação substituta imediata criou um vácuo legislativo (1822-1850) que, longe de democratizar o acesso, intensificou a grilagem, a violência no campo, a apropriação e a expropriação pública e privada de terras públicas por aqueles que já detinham poder econômico e político. Este período consolidou na prática o que a lei, mais tarde, viria a sacramentar.
A Lei de Terras (Lei nº. 601/1850) surgiu como uma resposta ao caos fundiário, mas sua lógica foi profundamente excludente. Ao estabelecer a compra como a única forma de acesso às terras devolutas, a lei erigiu uma barreira econômica intransponível para ex-escravizados, imigrantes pobres e pequenos posseiros. Ela efetivamente “legalizou a situação dos grandes proprietários”, transformando ocupações irregulares em propriedade privada mediante o registro, enquanto condenava os despossuídos à condição de mão de obra assalariada ou à informalidade da posse precária.
Os códigos civis que se seguiram (1916 e 2002), embora o último tenha incorporado o princípio da função social da propriedade, mantiveram um viés patrimonialista e individualista, sendo insuficientes para tratar das complexidades do direito agrário. A verdadeira inflexão conceitual só ocorreria com o Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/1964), um marco que, em pleno regime militar, introduziu conceitos progressistas. O Estatuto definiu a função social da propriedade, classificou o latifúndio por tamanho e por exploração, e criou instrumentos para a reforma agrária e a regularização fundiária, como a usucapião especial rural.
Este arcabouço foi elevado ao patamar constitucional pela Constituição Federal de 1988, que não apenas reafirmou a função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 186) e a possibilidade de desapropriação para reforma agrária (art. 184), mas também conferiu proteção específica aos direitos das comunidades tradicionais, reconhecendo a titulação de terras quilombolas (art. 68 do ADCT) e os direitos originários dos povos indígenas (art. 231).
Apesar deste sólido fundamento legal, a invisibilidade fundiária das comunidades tradicionais persiste. Este paradoxo é explicado pela morosidade estatal, pela sobreposição de interesses econômicos e por um conjunto de leis recentes que, sob o pretexto de agilizar a regularização, podem aprofundar o problema.
Normas como a Lei nº. 11.952/2009 (Terra Legal), seu decreto regulamentador (10.592/2020) e a Lei nº. 13.465/2017 trouxeram agilidade aos processos. No entanto, ao flexibilizar exigências, ampliar limites de área passíveis de regularização (como o aumento para até 6 módulos fiscais) e priorizar a autodeclaração, criam um risco real de legitimação da grilagem e de conflitos com territórios tradicionais. A tramitação de projetos de lei como o PL 2.633/2020 e o PL 510/2021, que propõem um novo marco temporal e a dispensa de vistoria prévia, acende um alerta máximo. Tais medidas, ao invés de proteger o legítimo posseiro, podem beneficiar grileiros de grande porte, consolidando a histórica “simbologia do papel” sobre o direito real e a ocupação tradicional.
Para quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e povos indígenas, a falta do título definitivo não é uma mera informalidade jurídica. É a negação de sua existência, cultura e meios de subsistência. Sem o título, suas terras ficam vulneráveis a invasões, ao agronegócio predatório, a grandes projetos de infraestrutura e a conflitos violentos. A regularização fundiária, quando não é guiada pelos princípios de transparência, participação social e direitos humanos – como destacado –, pode se tornar um instrumento de exclusão, aprofundando a invisibilidade fundiária que se quer combater.
A trajetória da destinação de terras no Brasil demonstra que a simples edição de leis, mesmo as mais avançadas, é insuficiente para desmontar uma estrutura fundiária cujas raízes mergulham no período colonial. A extinção das sesmarias não alterou a lógica de concentração; pelo contrário, está se reinventou através do vácuo legislativo, da Lei de Terras excludente e, hoje, sob o manto de uma modernização fundiária que pode privilegiar o capital em detrimento do direito.
A persistente invisibilidade fundiária rural, que atinge principalmente as comunidades tradicionais, é o sintoma mais claro desse fracasso histórico. Superá-la exige mais do que novos códigos ou decretos. Exige a efetiva implementação dos dispositivos constitucionais e do Estatuto da Terra, o fortalecimento dos órgãos fundiários, a destinação prioritária de terras públicas para reforma agrária e a proteção irrestrita dos territórios tradicionais. É uma questão de vontade política para enfrentar os interesses consolidados e, finalmente, romper com o legado sesmarial que ainda assombra o campo brasileiro, garantindo que a função social da propriedade prevaleça sobre a herança da desigualdade.
A INVISIBILIDADE FUNDIÁRIA NO BRASIL: UMA HERANÇA COLONIAL QUE PERSISTE NOS MARCOS LEGAIS CONTEMPORÂNEOS

