O desvio de função é uma prática cada vez mais debatida no cenário trabalhista brasileiro. Trata-se da situação em que um empregado contratado para exercer determinada atividade passa a exercer, de forma habitual, funções diferentes daquelas para as quais foi originalmente admitido, sem o correspondente reajuste salarial. Essa conduta tem sido alvo de fiscalizações e ações judiciais, que reconhecem a ilegalidade da prática e geram passivos expressivos para as empresas.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 461, prevê o princípio da isonomia salarial, segundo o qual empregados que exercem a mesma função devem receber salários iguais, salvo se houver diferença de produtividade, perfeição técnica ou tempo de serviço na função. Ainda que o artigo não trate diretamente do desvio de função, a sua lógica de igualdade e justiça remuneração fundamenta o entendimento jurisprudencial sobre a ilegalidade da prática.
É importante lembrar que a jurisprudência trabalhista vem reiterando que, havendo o desempenho habitual de tarefas alheias ao cargo original, especialmente de maior complexidade ou responsabilidade, o trabalhador faz jus ao salário correspondente à nova função. O entendimento predominante nos Tribunais Regionais do Trabalho e no Tribunal Superior do Trabalho (TST) é no sentido de que a omissão da empresa em promover a reclassificação e o reajuste caracteriza enriquecimento sem causa.
Segundo dados recentes de consultorias trabalhistas e escritórios especializados, o número de ações judiciais envolvendo desvio de função aumentou cerca de 20% nos últimos dois anos. A maioria dos casos decorre de mudanças internas nas empresas, como reestruturações, cortes de pessoal ou aumento da demanda por serviços, que levam os empregados a acumular novas tarefas sem o devido reconhecimento salarial. Esse comportamento tem gerado condenações judiciais com impacto financeiro considerável.
Em um caso julgado pelo TRT da 8ª Região, um trabalhador contratado como auxiliar de serviços gerais comprovou que, por mais de dois anos, exerceu funções típicas de técnico de manutenção predial, realizando reparos elétricos, hidráulicos e estruturais. A Justiça do Trabalho reconheceu o desvio de função e determinou o pagamento das diferenças salariais correspondentes ao período, com reflexos em férias, 13º salário e FGTS.
Além das diferenças salariais, as condenações por desvio de função podem gerar outras consequências para as empresas, como o reconhecimento de acúmulo ou acúmulo de funções, pagamento de indenização por danos morais, multa por descumprimento de normas contratuais e até inserção da empresa em cadastros de devedores da Justiça do Trabalho. O impacto reputacional e financeiro, portanto, vai além do simples pagamento retroativo de salários.
Do ponto de vista preventivo, as empresas devem adotar boas práticas de gestão de pessoal e recursos humanos. Entre as medidas recomendadas estão a atualização constante das descrições de cargos, a realização de auditorias internas para verificar a compatibilidade entre função contratual e atividades exercidas, o treinamento das lideranças para detectar e corrigir distorções e o acompanhamento jurídico de eventuais reclassificações.
É fundamental que os departamentos de RH mantenham um canal de escuta permanente com os colaboradores, incentivando o relato de situações em que estejam desempenhando tarefas distintas das previstas em contrato. O diálogo e a transparência contribuem para a construção de um ambiente de trabalho mais justo e evitam conflitos judiciais que podem ser resolvidos ainda na esfera administrativa.
A reforma trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017) trouxe algumas flexibilizações para a negociação entre empregador e empregado, mas não autorizou o desvio de função sem a devida contraprestação. Pelo contrário, manteve a importância do contrato de trabalho escrito como principal instrumento de definição de direitos e deveres. Alterações nas condições de trabalho, especialmente aquelas que envolvem novas funções, devem ser formalizadas com segurança jurídica.
O TST, em decisões recentes, tem reafirmado que a tolerância da empresa diante do exercício de funções alheias ao contrato original, sem a correspondente readequação salarial, configura prática abusiva. A Súmula 378 do TST trata do adicional de periculosidade e outras situações de alteração contratual, mas o entendimento majoritário também se aplica a casos de desvio, com base nos princípios da boa-fé e da função social do contrato.
A Constituição Federal, no artigo 7º, inciso XXX, assegura aos trabalhadores a proibição de diferença de salários por motivo de função. Essa norma tem sido aplicada como fundamento constitucional para sustentar que o trabalhador desviado de sua função tem direito à equiparação salarial. A jurisprudência ainda tem se apoiado no artigo 468 da CLT, que veda alterações unilaterais prejudiciais ao empregado.
Na prática, a responsabilidade por evitar o desvio de função é compartilhada por toda a estrutura organizacional. Chefias imediatas, gestores de departamento, RH e compliance devem estar atentos às rotinas e mudanças no dia a dia da empresa. A promoção de uma cultura de respeito aos contratos e à valorização do trabalho são pilares de um ambiente organizacional saudável.
Do ponto de vista do trabalhador, é importante que ele documente as atividades que passa a desempenhar, registre comunicações formais com a chefia e, caso necessário, busque orientação sindical ou jurídica. A prova documental e testemunhal tem sido essencial para o reconhecimento do desvio em juízo. Muitos trabalhadores só tomam ciência de seus direitos ao serem demitidos, quando buscam regularizar pendências com o auxílio de advogados ou defensores públicos.
O debate sobre o desvio de função é também um espelho da informalidade disfarçada e da sobrecarga funcional que ainda existem em muitas relações de trabalho no Brasil. Embora o país tenha avançado na proteção legal do trabalhador, é preciso fortalecer a fiscalização, os canais de denúncia e as instâncias de mediação. A valorização do trabalho passa necessariamente pela garantia de condições dignas, justas e compatíveis com as funções exercidas.
O papel da Justiça do Trabalho permanece central nesse processo. Por meio da aplicação dos princípios constitucionais, da interpretação sistemática da CLT e da valorização das provas, os tribunais têm contribuído para o reequilíbrio das relações trabalhistas e para a repressão de práticas abusivas. Mas é fundamental que esse esforço seja acompanhado por uma mudança cultural e empresarial que coloque o ser humano no centro da relação de trabalho.
Enquanto isso não acontece, cresce a necessidade de que trabalhadores conheçam seus direitos, empresas revisem suas práticas e o Estado ofereça mecanismos acessíveis para a proteção jurídica do trabalho. O desvio de função não é um problema apenas técnico — é, acima de tudo, uma questão de respeito à dignidade do trabalhador.
Garantir que cada trabalhador receba o que lhe é devido, pelo que efetivamente realiza, não é apenas uma obrigação legal. É um dever ético, social e constitucional. E a sociedade inteira sai ganhando quando esse princípio é respeitado.
André Lobato