A sucessão hereditária, regulada pelo Código Civil, inicia-se com a morte do de cujus, transmitindo-se automaticamente seus bens aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784), em um condomínio provisório conhecido como comunhão hereditária. É comum, no entanto, que os herdeiros posterguem a abertura do inventário e a partilha formal dos bens. Nesse interim, frequentemente um dos filhos permanece residindo no imóvel dos pais falecidos, assumindo sozinho os encargos da propriedade, como pagamento de IPTU, contas de água e energia, e realizando benfeitorias. Esta realidade prática suscita dois grandes questionamentos jurídicos:
- Essa posse prolongada pode, por si só, transformar-se em propriedade exclusiva via usucapião, independentemente dos direitos dos demais herdeiros?
- Os coerdeiros, que se mantiveram inativos por anos, podem, posteriormente, reivindicar suas partes na herança?
Para responder a tais indagações, é necessário conciliar os institutos da posse e da usucapião (Livro III do CC) com o direito das sucessões, valendo-se da doutrina e, sobretudo, da jurisprudência recente do STJ, que tem firmado entendimento sobre a matéria. Com o falecimento, instaura-se a comunhão hereditária. Todos os herdeiros tornam-se, desde logo, condôminos do imóvel (art. 1.791). O herdeiro que nele permanece pode estar em uma de duas situações jurídicas distintas: detenção ou posse com ânimo de dono (animus domini).
A Detenção (art. 1.198, CC) ocorre quando o herdeiro reside no imóvel com a anuência expressa ou tácita dos demais, apenas como “fâmulo da posse” da herança. Ele age em nome do condomínio, e seus atos não visam à exclusividade. Nesta hipótese, não há falar em usucapião.
Por sua vez, a Posse com animus domini (arts. 1.196 e 1.200, CC) configura-se quando o herdeiro-ocupante exerce poderes de propriedade de forma exclusiva, comportando-se como se único dono fosse, sem reconhecer a copropriedade dos irmãos. Este é o cenário essencial para a discussão da usucapião.
A jurisprudência do STJ, como destacado nos textos de apoio (Informativo 822, REsp 1.301.989/RS, REsp 2.355.307/SP), exige a comprovação de uma verdadeira ruptura da comunhão. Atos como impedir o acesso dos demais herdeiros, notificá-los de que o imóvel é seu, realizar obras significativas por conta própria e, crucialmente, arcar sozinho e de forma contínua com todos os encargos (IPTU, taxas, contas de consumo, reformas) são indícios robustos do animus domini.
Superada a fase de caracterização da posse exclusiva, aplica-se ao caso a usucapião extraordinária (art. 1.238, CC). O herdeiro que exerce posse mansa, pacífica e ininterrupta por 15 (quinze) anos, com ânimo de dono, pode adquirir a propriedade do imóvel. O prazo pode ser reduzido para 10 (dez) anos se o ocupante tiver estabelecido no imóvel sua moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo (parágrafo único do art. 1.238).
O STJ, em decisões reiteradas, afastou o entendimento de que a mera condição de herdeiro seria óbice à usucapião. O Tribunal consolidou o posicionamento de que “o herdeiro que tem a posse exclusiva do imóvel objeto de herança possui legitimidade e interesse na declaração de usucapião extraordinária em nome próprio”.
Portanto, preenchidos os requisitos temporais e fáticos (posse exclusiva, animus domini, ausência de oposição), o herdeiro ocupante pode ajuizar ação de usucapião e obter a propriedade plena e exclusiva do bem, independentemente das quotas hereditárias dos irmãos. A aquisição é originária, não incidindo ITCMD ou ITBI.
Importante destacar que, tratando-se de sucessão hereditária, o herdeiro continua de pleno direito a posse do de cujus (art. 1.207, primeira parte, CC), caracterizando a sucessio possessionis. A inércia dos demais herdeiros é fator decisivo para a consumação da usucapião. No entanto, eles não perdem automaticamente seus direitos pela simples passagem do tempo. Podem, a qualquer momento, antes da sentença transitada em julgado na ação de usucapião, promover o inventário e a partilha. Tal iniciativa tem duplo efeito prático:
a) Interrupção do Prazo da Usucapião: A citação válida do herdeiro-ocupante em uma ação de inventário judicial ou em uma ação de divisão de coisa comum constitui ato interruptivo do prazo aquisitivo (art. 1.243, CC). A posse deixa de ser “ininterrupta” para fins de usucapião.
b) Reivindicação da Quota-Parte: No inventário, o bem será incluído no monte mor e partilhado. O herdeiro ocupante, ainda que tenha investido no imóvel, não poderá opor-se à partilha com base apenas na posse prolongada. Contudo, terá direito, como possuidor de boa-fé, à indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis realizadas (art. 1.219, CC), podendo inclusive exercer o direito de retenção.
A discussão, então, se desloca da propriedade para o rateio de valores e compensações. É imperioso destacar dois limites importantes: - Fraude à Lei: A usucapião não pode ser utilizada como mecanismo fraudulento para escapar do pagamento de impostos devidos na sucessão. Um acordo entre todos os herdeiros para simular uma usucapião e evitar o ITCMD é ilícito. A via adequada para a partilha consensual é e sempre será o inventário (extrajudicial ou judicial).
- Posse não Exclusiva: Se o herdeiro-ocupante sempre agiu com a tolerância ou anuência dos demais, sem excluí-los efetivamente, ou se os outros herdeiros também utilizavam o imóvel esporadicamente, não se caracteriza a posse exclusiva necessária à usucapião. Neste caso, a solução para o ocupante que deseja regularizar a situação passa por acordo de compra e venda das quotas, arbitramento de aluguel a favor dos demais ou a formalização de um contrato de comodato.
A coexistência entre direitos hereditários e a aquisição por usucapião gera uma tensão jurídica resolvida pela análise concreta do comportamento das partes. De um lado, o herdeiro que, após o falecimento dos pais, ocupa o imóvel de forma exclusiva, age como proprietário e suporta sozinho seus ônus por mais de 15 (ou 10) anos, tem assegurada pela jurisprudência do STJ a possibilidade de adquirir a propriedade integral via usucapião extraordinária.
Do outro lado, os demais herdeiros conservam o direito de reivindicar suas quotas hereditárias, desde que ajam tempestivamente, promovendo o inventário.
Esta ação judicial interrompe o prazo usucapiente e obriga a partilha do bem, resguardando ao ocupante apenas o direito a indenizações pelas benfeitorias realizadas.
Portanto, a passividade dos coerdeiros é o principal fator de risco para a perda de seu quinhão sucessório. A segurança jurídica recomenda que, havendo imóvel em herança não partilhado, os herdeiros busquem a regularização do espólio, seja pela via do inventário amigável, seja por meio de acordos específicos que delimitem os direitos de uso e propriedade, evitando assim longos e desgastantes litígios judiciais.

