Enquanto o Brasil avança lentamente em políticas públicas de inclusão, cresce na Justiça do Trabalho um tema que merece cada vez mais atenção: o direito de mães e pais que precisam acompanhar de perto seus filhos com deficiência, especialmente aqueles diagnosticados com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Esta semana, mais uma decisão judicial reacendeu o debate: a concessão da redução de jornada de trabalho, sem prejuízo salarial, para uma mãe cuidadora de criança com TEA.
A pergunta que surge é: existe esse direito na lei? A resposta, por ora, não é simples. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não prevê expressamente esse benefício no setor privado. No entanto, com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da proteção à infância (art. 227) e do direito à saúde (art. 6º), juízes têm reconhecido esse direito como decorrência natural da proteção integral da criança e da função social do trabalho. Trata-se de uma construção jurisprudencial inspirada por princípios maiores que colocam o bem-estar da família e da pessoa com deficiência como prioridade do Estado e da sociedade.
A jurisprudência trabalhista tem se mostrado cada vez mais sensível ao tema. Nos últimos anos, diversos tribunais regionais do trabalho — inclusive o TRT da 8ª Região — já reconheceram o direito de mães e pais de crianças com deficiência a reduzir sua jornada para que possam oferecer o cuidado necessário, desde que devidamente comprovado por laudos médicos, relatórios terapêuticos e demais documentos que atestem a necessidade de acompanhamento contínuo. Essas decisões demonstram o avanço do direito do trabalho em incorporar os direitos humanos e sociais à sua prática cotidiana.
No plano legislativo, três normas são fundamentais quando o tema envolve o Transtorno do Espectro Autista. A primeira é a Lei nº 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Essa legislação estabelece que a pessoa com TEA é considerada pessoa com deficiência, garantindo-lhe todos os direitos assegurados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A segunda norma essencial é a Lei nº 13.146/2015 — o Estatuto da Pessoa com Deficiência — que também reconhece o autismo como deficiência, promovendo ampla proteção legal à pessoa com TEA. Por fim, a Lei nº 13.977/2020, conhecida como Lei Romeo Mion, criou a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (CIPTEA), instrumento que facilita o acesso a direitos e serviços públicos e privados, especialmente em casos de emergência e de priorização de atendimento.
Além disso, o artigo 98 da Lei nº 8.112/1990 assegura aos servidores públicos federais a possibilidade de reduzir sua jornada de trabalho sem necessidade de compensação de horas, quando possuem cônjuge, filho ou dependente com deficiência. Embora essa norma seja específica para o setor público federal, ela tem servido de base argumentativa para decisões no setor privado, ainda carente de regulação sobre o tema. A ausência de uma norma geral para o setor privado cria desigualdade no tratamento de trabalhadores que, apesar de enfrentarem as mesmas dificuldades, ficam dependentes da interpretação judicial.
Para o trabalhador que pretende pleitear esse direito, é essencial reunir documentação robusta: laudos médicos atualizados, diagnósticos reconhecidos, relatórios de profissionais de saúde, além da descrição de terapias e tratamentos contínuos. É igualmente relevante demonstrar que sua presença é essencial no processo de desenvolvimento e cuidado do dependente. Provas testemunhais e o envolvimento ativo em atividades como sessões de fonoaudiologia, psicopedagogia e terapias ocupacionais ajudam a reforçar o vínculo e a necessidade da assistência direta.
A iniciativa ideal é, sempre que possível, buscar diálogo com o empregador. Muitos casos podem ser resolvidos com flexibilidade na jornada, adoção de teletrabalho, banco de horas ou escalas adaptadas. Contudo, caso não haja uma solução administrativa, o caminho judicial se torna necessário — e, felizmente, tem se mostrado receptivo à causa. Cabe também destacar o papel dos sindicatos, que podem contribuir na mediação e fortalecimento desses pleitos, inclusive com a inclusão de cláusulas em acordos e convenções coletivas.
Mais do que uma luta individual, essa pauta é um chamado coletivo para refletirmos sobre o papel da sociedade na proteção da infância e da pessoa com deficiência. Reconhecer a sobrecarga emocional, física e financeira enfrentada por essas famílias é o primeiro passo para a construção de um modelo de trabalho mais justo e inclusivo. A flexibilização da jornada não representa um privilégio, mas uma condição mínima para que esses trabalhadores possam exercer com plenitude suas obrigações familiares e profissionais.
As decisões da Justiça do Trabalho também ecoam um valor fundamental: não há inclusão verdadeira sem acolher quem cuida. A jornada justa para pais e mães de crianças com deficiência não é benefício, mas um direito, que deve ser respeitado, valorizado e promovido. O cuidado é um trabalho não remunerado, invisível para muitos, mas que sustenta o bem-estar e a inclusão de milhares de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Experiências internacionais apontam caminhos interessantes. Na França, por exemplo, há licenças remuneradas para cuidadores familiares. No Canadá, políticas de apoio ao cuidador permitem a conciliação entre o trabalho e a vida pessoal. Em Portugal, há previsão legal de faltas justificadas e apoio financeiro ao cuidador informal. Essas medidas mostram que é possível construir políticas públicas sensíveis à realidade de quem cuida, promovendo equidade nas relações de trabalho.
No Brasil, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.436/2022, que visa permitir a flexibilização da jornada de trabalho e do local de trabalho para mães e pais de crianças com deficiência. A proposta ainda não foi aprovada, mas representa um avanço na discussão do tema no Legislativo, mostrando que há uma preocupação crescente com a realidade dessas famílias. Até que se aprove uma legislação abrangente, o Judiciário continuará tendo papel essencial na efetivação desse direito.
A urgência de uma legislação clara é inegável. Enquanto isso não ocorre, o Judiciário continuará tendo papel crucial na construção de um novo paradigma de proteção social. O direito de cuidar precisa deixar de ser exceção para se tornar regra. O exemplo de países como Canadá, França e Portugal, que já possuem políticas públicas voltadas ao apoio do cuidador familiar, pode inspirar avanços significativos no Brasil.
Porque garantir o cuidado a quem cuida é também um compromisso com a dignidade de todos. E esse compromisso precisa ser refletido não apenas nas decisões judiciais, mas nas políticas públicas, nas leis e no cotidiano de nossas relações de trabalho.