-“O Estado sou eu” – disse Luis XIV, rei da França. Naquele tempo, assim era. Reinou por longos 72 anos e mandou muito. É exemplo da imensa concentração de poder nas mãos dos reis absolutistas europeus, contexto logo depois interrompido sob as lâminas das guilhotinas da Revolução Francesa, que, cortando cabeças, viraram símbolo daquela Era que tanto mexeu no mapa europeu. A vontade dos reis e rainhas era absoluta e não podia ser contrariada. O povo não entrava nesse clube fechado, de reis, ministros e nobres com títulos. Os senhores feudais podiam tudo: eram os donos das terras e dos exércitos, definiam as leis e a concessão de favores e eram os gestores do grosso comércio e julgadores.
É interessante interromper o fluxo do texto para, neste parágrafo, lembrar que o maior feudo do mundo ficava no Brasil – e isso é algo que não nos ensinaram! As ruínas (belas, por sinal) do Castelo de Garcia D´ávila estão lá, no alto do monte, à beira mar, na região de Mata de São João, município baiano próximo a Salvador (vale a visita!). As imensas terras iam do litoral baiano até o Maranhão, como bem retrata o historiador Moniz Bandeira, na imensa obra intitulada O Feudo. Equivalia a 800 mil quilômetros quadrados ou cerca de 10% de todo o território brasileiro atual, algo como a soma dos territórios de modernos países inteiros como Itália, Portugal, Holanda, Espanha e Suíça!
Contudo, embora o Ocidente foque no Absolutismo europeu, mania que, também, parece ignorar o que ocorreu e ocorre no mundo, a História registra que ainda se vive tempos de dominação política com ampla centralização de poder nas mãos de poucos e com governantes não eleitos segundo o ideal democrático ocidental. Na maioria dos casos, era – e é – na base da força que as coisas se impunham, com o esmagamento de minorias, variações do que poderíamos chamar de guerra civil e golpes, traições e assassinatos.
Na prática, poucos dominam o sistema e o povo vive a sua vida, do jeito que dá, tentando sobreviver a um dia de cada vez e meio alheio a tudo da alta política, ainda sujeitando-se a regras que não estabeleceu e ao pagamento de tributos “impostos”. Os regimes autocráticos – que, hoje, corresponderiam ao conceito de ditatoriais – ocorreram, com as devidas e locais variações de características, em muitos países e governos pelo mundo, ao longo da história humana e tanto e a tal ponto que podemos dizer que a Democracia atual é exercício recente e quase um ponto fora da curva da história da humanidade e da sua identidade cultural e política.
Atualmente, 5,7 bilhões de pessoas (72% da população mundial) estão vivendo sob autocracias, havendo apenas 13% sob democracias liberais, conforme estudo feito pelo Instituto V-Dem, da sueca Universidade de Gotemburgo. Os detalhamentos do documento, produzido no ano de 2023 e com 56 páginas, pode ser livremente acessado no seu site (https://v-dem.net/documents/29/V-dem_democracyreport2023_lowres.pdf). Isso é importante para que possamos compreender o contexto global e analisar fatos muito além do nosso pequeno microcosmo nacional, para perceber que, a par dos conceitos e belas lições constitucionais, o ser humano tem a tendência de concentrar o exercício do poder e de agir como se tivesse potestade plena e acima de qualquer texto legal ou limite ético ou moral.
A Democracia moderna tem remota origem na Grécia mas não corresponde ao modelo originário. Sua categorização está no sistema norte-americano, com raízes profundas na pretendida distinção do regime opressor inglês, do qual ficou independente. Naquela época, quiseram moldar um sistema que lhes protegesse de ditadores e autocratas. Também atribuíram aos partidos a escolha dos seus candidatos e os moldaram de modo que pudessem frear arroubos aventureiros e com pretensão autoritária. Quando surgiu em 1787, a Constituição americana veio de modo enxuto, funcional e estável, imune aos ventos políticos que lhe pudessem desestabilizar, tendo sido moldada de forma a ajustar as teses republicanas e federalistas, que então se enfrentavam, com os primeiros defendendo a autonomia dos estados ante o governo central, ao contrário dos últimos. O texto original ainda vige, tendo sofrido poucas emendas, como as do chamado de Bill of Rights, cuidando da liberdade religiosa e da liberdade de expressão.
Para boa compreensão do seu alcance e significado, é preciso que se compreenda as estruturas conceituais e filosóficas plantadas por Alexander Hamilton, James Madison e John Ray, que escreveram os chamados Artigos Federalistas, constituídos por 85 estudos e que decorreram das reuniões havidas na Filadélfia, em 1787, mesmo ano do parto daquela Constituição. Esses pensadores expuseram, justificada e profundamente, os fundamentos das suas ideias e as suas preocupações com cada detalhe em torno do surgimento daquele novo país. Pensaram que o governo deveria funcionar a partir do respeito da preservação e proteção da liberdade individual, com James Madison dizendo: …”Ao moldar um governo que deve ser exercido por homens sobre homens […] é preciso primeiro capacitar o governo […] a se controlar a si próprio”. A respeito, muito bem escreveu o francês Alexis de Tocqueville, em duas obras obrigatórias em qualquer biblioteca voltada aos estudos políticos, intituladas A Democracia na América e O Antigo Regime e a Revolução. Falamos nisso para ressaltar que, no sistema democrático contemporâneo, deve ser muito valorizado o respeito às liberdades, ao indivíduo e às minorias. Liberdade essa, aliás, até para criticar os governantes e exprimir os seus pensamentos.
Perceber que liberdade combina com Democracia é fato que nos parece óbvio. Também nos parece natural conceber que o governo deva ser moldado e exercido de sorte a controlar-se a si próprio e de haver um sistema de freios e contrapesos para regular as atuações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. A história e os filmes e romances fixaram a ideia do tirano e do rei ou da rainha sem empatia e opressor, mandando calar vozes populares e de oponentes, determinando a prisão política ou criminal sem devido processo legal ou justo direito de defesa, sem habeas corpus e com torturas correndo soltas nas masmorras. Coisas do passado? Guantánamo que o diga!
Paralelamente, longe das intrigas palacianas, ficou no imaginário a ideia de que o povo estava feliz, apesar das condições em que vivia e, não raro, desse ou daquele movimento de resistência, como fez o nosso Tiradentes e, no exterior, fizeram El Cid (na Espanha) e Robert Bruce (no contexto da independência da Escócia) e, em Shakespeare, na trama em torno dos personagens Brutus e Julius Cesar. Aliás, como ninguém, o magistral escritor captou as sutilezas da volubilidade da opinião pública, com Marco Antonio questionando se César seria, assim, tão ruim e se não era verdade que muito amava Roma. Mais recentemente, quem não se lembra da imagem do homem de pé, sozinho, em frente aos tanques de guerra – naquela cena épica da realidade superando a ficção – diante do Massacre da Paz Celestial, evento ocorrido na China, em 1989?
Resumidamente, falamos nessas questões para enaltecer o fato de que a Democracia moderna é apenas pequeno momento na longa história humana das autocracias. Curiosamente, há profusão de livros surgindo em torno da sua crise existencial, algo que vemos como natural, porquanto esse modelo deve ser permanentemente ajustado, pena de erodir por completo. Sem que compreendamos isso, não passará de breve capítulo na longa história humana. Talvez nem seja a Democracia que esteja em crise, mas o próprio Poder que, no modelo, decorre da nossa individualidade, já que nos sentimos sozinhos em meio à multidão, bombardeados pelo massacre de notícias e mensagens de todos os tipos e de todos os cantos e, de certo modo, confusos entre o mundo real e a bonança da utopia e da aparência editada, que representamos nas redes sociais.
Se a Democracia fracassar, como fato histórico, voltaremos aos capítulos mais próprios de outros tempos e com requintes perigosíssimos adicionados ao contexto: população mundial imensa, crise ambiental e pouca água potável disponível, quiçá crises decorrentes de abalos na soberania alimentar de povos e com forte incidência dos armamentos e exércitos poderosos, como nunca antes vistos, além da possibilidade de guerra cibernética que possa colocar o mundo tecnológico de joelhos… com concentração de poder como nunca antes visto, nas mãos de poucos e em proporções próximas ao pior cenário do Armagedon bíblico, da Divina Comédia de Dante e do paraíso perdido de Milton.